Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

10/05/2009

Hannah Arendt: Poder, Liberdade e Direitos Humanos
Curso de Filosofia do Direito - Eduardo C. B. Bittar, Guilherme Assis de Almeida - 4.ed - São Paulo: Atlas, 2005. 

21.1 O poder não violento

Hannah Arendt (1906-1975), filósofa judia nascida em Linden, na Alemanha, perseguida pelo nazismo e exilada nos Estados Unidos desde 1941, onde vem a falecer após largo trabalho em universidades americanas no campo da filosofia política, em especial na New School for Social Research de New York, elaborou uma definição de poder que foge aos padrões convencionais, e que tem como marca distintiva a não-inclusão da violência como elemento constitutivo. Aliás, toda a sua obra é um imenso registro de luta contra o arbítrio do poder violento (As origens do totalitarismo] Eichmann em Jerusalém; A condição humana; Homens em tempos sombrios; Entre o passado e o futuro; entre outras). 

Assim: "Max Weber definiu o poder como a possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio. Hannah Arendt, ao contrário, concebe o poder como a faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre de violência. Ambos vêem no poder um potencial que se atualiza em ações, mas cada um baseia-se num modelo de ação distinto." 1
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1- Habermas: Sociologia. Freitag e Rouanet. São Paulo: Ática, 1980. p. 34.
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Na concepção arendtiana, a convivência pacífica entre os homens é o fator que propicia a ação conjunta e é esta ação que é geradora de poder. Como a própria Hannah Arendt conclui:"O único fator indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e torna-se impotente, por maior que seja sua força e por mais válidas que sejam suas razões." 1

Para Hannah Arendt, a geração do poder não é um trabalho,2 mas a conseqüência da ação conjunta dos homens, a qual propicia, pelo discurso, a revelação de cada indivíduo em sua específica singularidade. A ação não violenta é a única forma de ação que possibilita o encontro dos homens pela palavra. A ausência de violência é necessária, pois, na atividade humana da ação, não se objetiva atingir determinado fim, mas a descoberta de uma meta comum que sirva como elemento aglutinador. Quando a palavra é usada tão-somente para atingir um fim específico, ela perde sua característica de revelação.

"Isso ocorre sempre que deixa de existir convivência, quando as pessoas são meramente 'pró' ou 'contra* os outros, como ocorre, por exemplo, na guerra moderna, quando os homens entram em ação e empregam meios violentos para alcançar determinados objetivos em proveito de seu lado e contra o inimigo. Nessas circunstâncias, que naturalmente sempre existiram, o discurso transforma de fato em mera 'conversa', apenas mais um meio de alcançar um fim, quer iludindo o inimigo, quer ofuscando a todos com propaganda."3

Dessa forma, a não-violência é requisito essencial para a geração do poder advindo do agir conjunto.

"A violência destrói o poder, mas não o cria ou substitui, pois o poder, para ser gerado, exige a convivência, e a violência baseia-se na exclusão da interação/cooperação com os outros. Isso explica a combinação, que não é rara na experiência política, de violência e impotência, pois governantes e governados freqüentemente não resistem à tentação de substituir o poder que está desaparecendo pela violência."4

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1. Arendt, A condição humana, 1992, p. 201.
2. Termo utilizado como uma das três atividades fundamentais da condição humana; as outras duas seriam: a ação e o labor. Para um estudo detalhado do tema, ver Arendt, A condição humana.
3. Arendt, Op. cit., p. 193.
4. Lafer, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, 1988, p. 209-210.
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21.2 O desvirtuamento do poder e a violência

O poder pode ser dito algo inerente às estruturas sociais. Onde há sociedade, há poder. Contudo, à idéia de poder por vezes ocorre estar acoplada àquela outra de violência. A equivalência não é perfeita, entre as duas idéias, e nem mesmo a coincidência histórica pode fazer disso uma verdade. O que se há de dizer, no entanto, é que o poder violento, ou seja, a associação de poder com violência é já uma demonstração do desvirtuamento conceituai da idéia de poder.1 Mais que isso, é já sinal de que o poder, que funciona na base de consensos e jogos de aceitação, encontra-se ameaçado de extinção, cedendo espaço para algo que lhe substitui, e que não depende de consentimento, mas da capacidade técnica de gerar sofrimento e submissão: a violência.

O poder, propriamente, deixa de existir, quando entra em ação um conjunto de aparatos cuja força representa uma aniquilação do poder de estar com, de discussão, de debate, de discurso, elementos que caracterizam o estar entre homens (inter homines essere). Ceder espaço ao advento da força é negar o princípio da ação e da busca de consensos por meio da ingerência de instrumentos de submissão e de abuso da condição humana:

"Aqueles que se opõem à violência com o mero poder rapidamente descobrirão que não são confrontados por homens, mas pelos artefatos humanos, cuja desumanidade e eficácia destrutiva aumentam na proporção da distância que separa os oponentes. A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder" (Arendt, Sobre a violência, 1994, p. 42).

A potência que acompanha a violência é exatamente o que torna a sutileza da política algo de que se pode prescindir, algo de que se pode abrir mão, em momentos em que a violência predomina. Isso porque decisões acompanhadas de violência são pautadas pela capacidade de abafarem expectativas de contrariedade. Num confronto entre o poder e a violência, quem cede? Será que o poder e suas artimanhas complexas de atuação entre os homens são mais eficientes que a bala de canhão, ou que os incontáveis bandos de fanáticos dispostos a dar vida por um ideal, ou mesmo em função de ordens superiores?2

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1. Poder é definido com os seguintes termos por Hannah Arendt: "O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está 'no poder', na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo, do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo, sem um povo ou grupo não há poder), desaparece, 'seu poder' também se esvanece. Em seu uso corrente, quando falamos de um 'homem poderoso' ou de uma 'personalidade poderosa', já usamos a palavra 'poder' metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem a metáfora é o Vigor' [strenght]" (Arendt, Sobre a violência, 1994, p. 36).

2. "Politicamente, o ponto é o de que com a perda do poder torna-se uma tentação substituí-lo pela violência - em 1968, durante a Convenção Democrática, em Chicago, pudemos assistir a este processo pela televisão -, e esta violência por si mesma resulta em impotência" (Arendt, Sobre a violência, 1994, p. 43).
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"Em um conflito frontal entre a violência e o poder, dificilmente o resultado é duvidoso. Se a estratégia da resistência não violenta de Gandhi extremamente poderosa e bem-sucedida, tivesse encontrado um inimigo diferente - a Rússia de Stalin, a Alemanha de Hitler e mesmo o Japão do pré-guerra, em vez da Inglaterra, o resultado não teria sido a descolonização, mas o massacre e a submissão" (Arendt, Sobre a violência, 1994, p. 42).

Já restou afirmado, com isso, portanto, que violência e poder não são a mesma coisa. Mas não basta. Deve-se grifar ainda que poder e violência são conceitos opostos, pois quando um está forte (poder consensual forte; violência e opressão absolutas), o outro está ausente (violência inativa; poder ineficaz e desacreditado).1

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1. "Para resumir: politicamente falando, é insuficiente dizer que poder e violencia não são o mesmo. Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder. Isto implica ser incorreto pensar o oposto da violência como a não-violência; falar de um poder não violento é de fato redundante" (Arendt, Sobre a violência, 1994, p. 46).
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