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O perecimento do mundo comum representa o aniquilamento da pluralidade humana - condição sine qua non para a vida política e para o agir humano - e, ao mesmo tempo, nega a capacidade humana para criar um mundo estável e permanente, que transcende a duração de uma vida humana mortal e a futilidade da vida em si.
É a esfera pública, local onde se é visto e ouvido por todos, que garante, evita e poupa a destruição, pelo tempo, do artefato humano.
Além disso, a sociedade de massa, na medida em que arrasta o mundo humano para o processo infindável do consumo e destrói os vínculos da comunidade política, provoca o isolamento e o conformismo - este último já referido anteriormente -, fenômenos correlatos, que indicam tão-somente a impotência humana para agir.
Uma vez perdido o caráter efetivo do mundo público, aspecto tão peculiar ao governo tirânico, inviabiza-se qualquer contato político e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas.
Numa sociedade em que todos estão submetidos a formas homogêneas e arbitrárias de comportamento e pensamento, a política perde todo seu real sentido e significado, qual seja, de ser o lugar multiplicador das possibilidades humanas para, através de palavras, atos e eventos extraordinários, revelar a identidade singular e distinta dos homens. A negação do mundo como fenômeno eminentemente político só adquire validade sob a premissa de que o mundo não durará.
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O paroxismo e a atitude destrutiva da modernidade jazem justamente em sua forma mais extrema e anti-humana no fato da sociedade de massa ao privar os indivíduos das relações objetivas com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos; priva-os, ainda, de um lugar no mundo e do lar privado, no qual todos podem resguardar-se da experiência fenomênica dos assuntos políticos.
Aspecto crucial para o entendimento da crítica de Arendt ao mundo moderno está no problema da propriedade privada. Segundo Arendt, no pensamento político clássico, a propriedade, embora situada na esfera privada, sempre houvera tido relevância para a sobrevivência do corpo político.
Isto se fazia necessário por que o pertencimento à política implicava que o indivíduo devia possuir um lugar determinado no mundo, no qual chefiasse e exercesse um domínio sobre uma família.
Ser proprietário, era ser visto e aceito como cidadão, além de poder viver sobre a proteção da lei, sendo o inverso, ou seja, não ter uma propriedade, estar destituído de cidadania.
A importância da propriedade não estava associada à riqueza que dela podia advir, mas na fundamental distinção política que ela imprimia aos indivíduos. (Ao contrário, "caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la em vez de utilizá-la para viver uma vida política, era como se ele espontaneamente sacrificasse sua liberdade e voluntariamente se tornasse aquilo que o escravo era contra a vontade, ou seja, um servo da necessidade.")
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O totalitarismo - a forma mais extrema de dominação política, uma vez que não se contenta em dominar o indivíduo exteriormente através do Estado e do controle dos meios de violência, mas atinge a interioridade, impedindo que o indivíduo aja ou pense e, ao mesmo tempo, destituindo-o de qualquer interesse, até mesmo do puro individualismo - encontra na sociedade de massas e no radical isolamento, solidão e caráter amorfo dos indivíduos, um ambiente extremamente adequado para a construçao de um mundo que, a despeito de toda sua horrenda crueldade, é irreal, pois somente tem existência na lógica e coerência de uma ideologia.
Desse modo, a solidão, o fundamento para o terror, a essência do governo totalitário e, para a ideologia ou à lógica, a preparação de seus carrascos e vítimas, tem íntima ligação com o desarraigamento e a superfluidde que atormentavam as massas modernas desde o começo da revolução industrial e se tornaram cruciais com o surgimento do imperialismo no fim do século passado e o colapso das instituições políticas e tradições sociais do nosso tempo.
Não ter raízes significa não ter um lugar no mundo, um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma. É a experiência extrema da solidão do homem moderno, que se transformou em evento cotidiano de massas cada vez maiores, o perigo que ameaça devastar o mundo que conhecemos - um mundo que, em toda parte, parece ter chegado ao fim - antes que um novo começo, surgido desse fim, tenha tido tempo de firmar-se.
O surgimento de uma mentalidade que negava a permanência e durabilidade do mundo foi o fato decisivo para que ninguém mais se sentisse responsável por coisa alguma, mesmo que isto implicasse uma destruição total da condição humana. Nas condições de uma sociedade de massa, onde os homens já não se sentem à vontade na companhia de ninguém e nem em parte alguma, a vida em si, enquanto mero processo biológico da espécie, parece ser o único objetivo que ainda resta e é perseguido.
É digno de nota, que em regimes totalitários, nem mesmo esse objetivo permaneça, sendo substituído pela dialética ou a lógica de uma Idéia, que não segue o movimento do mundo erigido pelos homens, mas se coloca além deles; são apenas objetos, daí serem tão supérfluos; ecessários para uma finalidade muito maior, a História ou a Natureza: "Num perfeito governo totalitário...toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história, onde cada ato é a execução de uma sentença de morte que a natureza ou a história já pronunciou..."
O horror mais brutal do totalitarismo e sua conexão com uma sociedade de massa, que lhe fornecera com angelical singeleza indivíduos propícios para seu ideal de domínio total foi ter demonstrado aquilo que ninguém jamais houvera ter pensado e que desafiava o bom senso e a crença das pessoas normais, qual seja, que tudo é possível.
É aqui que reside toda a impotência do pensamento com que deparou Arendt em sua tentativa de compreender o fenômeno do totalitarismo. Isto porque a aceitação da idéia de que tudo é possível implica a recusa tácita do significado e sentido inerente a toda ação humana.
É neste ponto que reside a crítica de Arendt à sociedade de massa, uma vez, que ela abre a possibilidade muito concreta nos dias de hoje de o homem e o mundo perder todo sentido e significado inteiramente humanos.
Portanto, concluindo, como o processo de desenvolvimento da sociedade de massa parece irrefreável, vale ressaltar a advertência feita por Arendt nas Origens do Totalitarismo: "Pode até ser que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica - embora não necessariamente a mais cruel - quando o totalitarismo pertencer ao passado."