21.3 Gandhi e a não-violência
Curso de Filosofia do Direito - Eduardo C. B. Bittar, Guilherme Assis de Almeida - 4.ed - São Paulo: Atlas, 2005.
"O ahimsa é a base da busca da Verdade. Todos os dias percebo que a busca é vã, a menos que seja apoiada no ahimsa. É apropriado oferecer resistência e atacar um sistema, mas oferecer resistência e atacar seu autor é equivalente a oferecer resistência e atacar a si próprio. Pois somos todos farinha do mesmo saco, e filhos do mesmo Criador, e portanto os poderes divinos em nós são infinitos. Menosprezar um único ser humano é menosprezar aqueles poderes, e assim prejudicar não apenas aquele ser, mas também o mundo inteiro."2
************
2. Gandhi, Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade, 1999, p. 244.
***********
Gandhi criou o termo satyagraha, formado da união de duas palavras sánscritas, satya (verdade) e agraha (estar conectado), para definir sua doutrina política. Ele deixa claro que a ahimsa é a forma de ação da satyagraha e que esta diferencia-se de modo radical da resistência passiva:
"Satyagraha, then is literally holding on to Truth and it means, therefore, Truth-force. Truth is soul or spirit. It is therefore, know as soul force. It excludes the use of violence, because man is not capable of knowing the absolute truth and, therefore, to punish. The word was coined in South Africa to distinguish the nonviolante resistance of The Indians of South Africa from the contemporary 'passive resistance' of the suffragettes and others. It is not conceived as a weapon of the weak.
For the past thirty years I have been preaching and practicing Satyagraha. The principles of Satyagraha, as I know it today, constitute a gradual evolution. Satyagraha differs from Passive Resistance as the North Pole from the South. The latter has been conceived as a weapon of the weak and does not exclude the use of physical force or violence for the purpose of gaining one's end, whereas the former has been conceived as a weapon of the strongest and excludes the use of violence in any shape or form... In the application of Satyagraha I discovered in the earliest stages that pursuit of truth did not admit of violence being inflicted one one's opponent but that he must be weaned from error by patience and sympathy. For what appears to be truth to the one may appear to be error to the other. And patience means self-suffering. So the doctrine came to mean vindication of truth not by the infliction of suffering on the opponent but on one's self."1
*************
1. Apud Dalton, Mahatma Gandhi nonviolent power in action, 1993: "SATYAGRAHÁ é literalmente agarrar-se à verdade e isso significa, portanto, a força da verdade que vem da alma ou espírito. Isso exclui o uso da violência, porque o homem não é capaz de punir conhecendo a força absoluta da verdade. Essa palavra foi cunhada na África do Sul para distinguir a resistência não violenta dos indianos da África do Sul da contemporânea "resistência passiva" dos eleitores e outros. Ela não foi concebida como uma arma do fraco.
Pelos últimos 30 anos eu venho pregando e praticando SATYAGRAHÁ. Os princípios da Satyagrahá, como eu os concebo hoje, constituem uma evolução gradual. SATYAGRAHÁ difere da resistência passiva como o Pólo Norte do Sul. Essa última foi concebida como uma arma do fraco e não exclui o uso da força física ou violência com o propósito de alcançar determinado fim, enquanto que a SATYAGRAHÁ foi concebida como uma arma forte e exclui o uso de violência em qualquer forma ou feitio.
Na prática do SATYAGRAHÁ eu descobri nos primeiros momentos que a busca da verdade não admite que a violência seja utilizada contra um oponente, mas que ele deve ser avisado de seu erro pela paciência e simpatia. Porque o que parece ser verdade para um pode ser erro para outro, e paciência significa autosofrimento. Assim, essa doutrina pretende ligar-se à verdade não pela inflingência de sofrimento em seu oponente, mas nele mesmo."
*************
A finalidade da doutrina da satyagraha é a conquista da libertação tanto coletiva, como individual. O termo usado por Gandhi para expressar essa libertação é: swaraj. Essa palavra sánscrita significa, literalmente, liberdade. E tem uma conotação espiritual, significando a liberdade da ilusão, do temor e da ignorância, o que implica um autoconhecimento e um domínio de si próprio. Gandhi aplica a idéia dessa libertação espiritual do indivíduo para o campo da libertação política coletiva.
Embora muitos classifiquem Gandhi como um dos idealizadores da desobediência civil, ele foi muito mais do que isso. O que ocorre é que, em algumas ocasiões, a doutrina política do satyagraha assume a forma de uma campanha de desobediência civil.
Um dos grandes momentos da vida de Gandhi como líder político, na índia, foi a Marcha do Sal, também conhecida como a Marcha de Dandi. Esse movimento popular foi uma campanha de desobediência civil que mobilizou toda a índia, no ano de 1930.
"En tanto que la desobediência común es un acto que desintegra el ordenamiento y, por esa razón, há de ser evitada o reprimida para devolver aquél a su estado primitivo, la desobediência civil es un acto que pretende en última instancia cambiar el ordenamiento; es en definitiva, un acto no distributivo, sino inovador. Se llama 'civil' precisamente porque quien la pratica no cree transgredir los deberes que impone la ciudadanía; por el contrário, se tiene por mejor ciudadano desobedeciendo en esa precisa circunstancia. Por esse carácter demonstrativo y esta finalidad innovadora, el acto de desobediência civil tiende a darse el máximo de publicidad."1
************
1. Bobbio, El tercero ausente, 1997, p. 117.
************
Gandhi tinha clara ciência dessa necessidade, tanto é assim que, antes de iniciar a campanha, escreve uma carta ao Viceroy, Lord Edward Irwin, contando detalhes da futura marcha.
No dia 12 de março de 1930, aos 60 anos de idade, Gandhi parte de Dandi, uma pequena vila localizada na província de Gujarat, ao oeste da índia, acompanhado de 78 seguidores. O objetivo dessa marcha era protestar contra a taxa que incidia sobre a coleta do sal.
Conforme a regulamentação do Indian Salt Act, de 1882, a representação do governo britânico, na índia, assumiu o monopólio da coleta e da manufatura do sal. Os depósitos de sal foram controlados pelo governo britânico, que cobrava uma taxa de 46 cents para cada maund (82 libras); isso equivalia a um imposto pesadíssimo para o povo indiano.
Gandhi escolheu o sal como objeto da marcha porque era um artigo de primeira necessidade das camadas populares e oprimidas da população indiana.
Ele mesmo teceu o seguinte comentário: "Next to air and water, salt is perhaps the greatest necessity of life. It is the only condiment of the poor...There is no article like salt outside water by taxing wich the state can reach even the starving millions, the sick, the maimed and the utterly helpless. The tax constitutes therefore the most inhuman poll tax that ingenuity of man can devise."2
***********
2. Dalton, Op. cit., p. 100, "Próximo do ar e da água, o sal é talvez a maior necessidade da vida. Este é o único condimento do pobre. Não existe nenhum artigo como o sal (com exceção da água), pelo qual, ao taxá-lo, o Estado possa atingir mesmo os milhões de famintos doentes, completamente miseráveis e mutilados. Essa taxa constitui portanto a mais inumana taxa que a ingenuidade do homem poderia imaginar."
***********
A desobediência civil foi iniciada por Gandhi, que desafiou o monopólio do governo britânico e desrespeitou a lei, ao simplesmente coletar sal natural da costa da índia, no dia 6 de abril de 1930.
"Thousands of people followed him and so sanctified themselves, an extraordinary sight beyond description. Finally, at 6:30, Gandhi stooped on the shore and picked up the symbolic salt and so offered civil disobedience. The deed was done. 'With this', he said, 'I am shaking the foundations of the British Empire'. A sweeping claim to be sure, but by the end of the year, more than 60.000 Indians (by government estimate) suffered imprisionment for committing an act no more or less than this."1
*********
1. Ibidem, p. 115. "Milhares de pessoas seguiram-no e também santificaram-se a si próprias, um extraordinário sinal além de qualquer descrição. Finalmente, às 6:30 Gandhi parou na costa e, simbolicamente, pegou o sal, concretizando a desobediência civil. 'Com esse ato - disse Ghandi -, eu estou balançando as fundações do Império Britânico.' Uma reivindicação para não deixar dúvidas, mas, até o final do ano, mais de 60.000 indianos (segundo estimativas do governo) foram aprisionados por imitarem esse gesto de Gandhi."
*********
A marcha inicial, em Dandi, foi acompanhada por milhares de outros seguidores, nos mais diversos pontos do território indiano, e intensificou-se, no dia 5 de maio de 1930, como conseqüência da prisão de Gandhi. Segundo fontes históricas, houve mais de 5.000 (cinco mil) reuniões que aglomeraram, no mínimo, 5.000.000 (cinco milhões) de pessoas. Gandhi percorreu a pé mais de 500 km, durante 24 dias. A campanha só veio a terminar um ano depois, quando Gandhi e o Lord Eward Irwin, o Viceroy, mantiveram negociações diretas.
Ao eleger a ahimsa (não-violência) como princípio de ação, Gandhi opta, sem a menor sombra de dúvida, por uma ética de princípios, já que a conquista do resultado, por mais importante que seja, não justifica, em hipótese alguma, a violação da integridade psicofísica do ser humano. Ora, a satyagraha, doutrina política de Gandhi, tem como objetivo a libertação {swaraj), que só poderá ser conquistada pela ação não violenta. Dessa forma, o raciocínio de meios e fins perde a razão de ser, já que a forma de ação não violenta integra a finalidade que surge paulatinamente.2
***********
2. Parekh, Gandhi: past masters, 1997, p. 38. "Finalmente, para Gandhi, a dicotomia meios e fins, que está na essência da maior parte das teorias sobre a violência, é falsa. Na vida humana, os assim chamados meios constituem-se não de implementos ou brinquedos inanimados, mas de ações humanas, e por definição não podem estar fora da jurisdição da moralidade. Além disso, o método de lutar por um objetivo não só apenas externo, mas uma parte do todo. Todo passo na direção de um desejo formava seu caráter, e o máximo de cuidado deveria ser tomado, pois do contrário isso poderia distorcer ou danificar o objetivo. O objetivo não existia no final de uma série de ações realizadas para atingi-lo; elas o esboçam desde os primeiros momentos. Os assim chamados meios eram realmente os fins numa forma embrionária, como sementes, das quais os assim chamados fins eram um fluir natural. Desde que isso era assim, a luta por uma sociedade justa não pode ser conduzida por meios injustos."
***********
A ação política gandhiana é simples e inovadora. Gandhi estabelece, com clareza, os três pontos fundamentais de sua prática: um princípio da ação, uma forma de luta e um objetivo a ser alcançado. O princípio da ação é a não-violên-cia (ahimsá); a forma de luta (satyagrahá) apresenta diversos métodos (greve, desobediência civil, jejum etc.) e tem elementos permanentes: um criterioso exame dos fatos e um apelo de entendimento ao adversário e, logo após, o exercício da não-violência ativa para tentar evidenciar a injustiça da situação.
O objetivo a ser alcançado é a libertação coletiva e individual (swaraj). Esses três pontos são interdependentes: ahimsa é o motor da satyagrahá, e a satyagrahá é o meio de se atingir swaraj. Gandhi tem plena consciência de sua responsabilidade instanciai; ele não age como um líder autoritário, mas lidera pelo exemplo, praticando, do modo mais rigoroso possível, a teoria por ele criada. Esse exemplo e os pontos essenciais da teoria gandhiana serão fonte de inspiração para os mais diversos pensadores e ativistas, entre eles o brasileiro Mário Carvalho de Jesus, o italiano Aldo Capitini, o Papa João XXIII, Marthin Luther King (Nobel da Paz - 1964), Dalai Lama.