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24/10/2008

De Josias a Jeremias
Uma história do Povo Judeu - Hans Borger - Editora Sêfer - 1999 p. 123-131
A morte de Josias assinala o último período de prosperidade de Judá, nação que ingressa agora numa rota de guerras, convulsões sociais e, finalmente, destruição.

No pequenino reino de Judá, uma das testemunhas do cataclismo geopolítico que sacudira todo o Crescente Fértil foi o profeta Jeremias. Sua vida sofrida e tumultuosa sobressai entre toda a literatura bíblica por sua excepcional riqueza biográfica. A fartura de material - só mesmo comparável ao do rei David - deve-se, em boa parte, às meticulosas anotações feitas por Baruc, o fiel discípulo e biógrafo do profeta.

Nascido na pequena cidade de Anatot, perto de Jerusalém, Jeremias descende de uma família tradicional de sacerdotes. Sua missão começa pouco antes da queda de Nínive, quando o derrame das hordas citas espalhava o terror. À aproximação da avalanche dos bárbaros, Jeremias corre para Jerusalém a fim de anunciar a horrível visão que havia tido.

"Do norte vem uma catástrofe imensa, assaltantes
chegam de país longínguo para as cidades de Judá
revoltadas contra Mim. Olhei para a terra:
tudo é caos e deserto. Olhei para o céu:
dele desapareceu a luz." (Jeremias 4)

Alguns dos populares nem prestam atenção, outros olham com curiosidade para a estranha figura que proclama esses maus augúrios. Não faltam profetas nas ruas de Jerusalém, eles costumam predizer vitórias e suas palavras são agardáveis como o mel. É o que o povo prefere. Em pouco tempo vão mesmo rir de Jeremias, pois os citas tomam o caminho do litoral, atraídos pelas fabulosas riquezas do Egito, desprezando o interior da pobre Judá. A visão do profeta havia falhado.

Jeremias equivocou-se, a destruição que previu ainda demoraria alguns decênios. O povo ri, e o profeta emudece. A causa do seu silêncio não vem do sentir-se desprezado. Ele não pleiteia popularidade, não fala para colher aplausos. Seu silêncio faz parte da situação de expectativa causada pela grande reforma de Josias, o novo entusiasmo religioso que parecia anunciar o ansiado Retorno a Deus.

Depois da prematura morte de Josias, o povo elege seu filho Jeoacás para sucedê-lo. Os egípcios, porém, intervêm, depondo o novo rei; deportam-no para o Egito, e o substituem por seu irmão Joiaquim, promessa de ser um vassalo mais conveniente.

Incentivados pelo próprio rei, os reacionários tomam conta do governo, disseminam cultos egípcios e sumetem o país a uma impiedosa arrecadação de tributos para encher os cofres públicos esvaziados por Neco. Jeremias volta às ruas de Jerusalém, posta-se em esquinas e praças, exortando o povo:

"Assim como Me abandonastes para servir em vosso país a
deuses estrangeiros, assim também servireis a estrangeiros em país que não é vosso. Não temeis a Minha face ?
Eu que fixei a areia como limite ao mar -
não tremeis diante de Mim? Perversos se encontram
no seio do meu povo, se apresentam nutridos e reluzentes.
Prosperam e não fazem justiça aos infelizes.
Como poderei deixar de punir tais crimes ?" (Jeremias 5)

"Não imiteis o procedimento dos pagãos. Os deuses
deles são apenas vaidade, obra feita pelas mãos
de artesãos. So o Senhor é Deus vivo, é Ele quem
criou a terra, criou tudo, JAVÉ, é seu nome.
Um grande tumulto há de transformar
as cidades de Judá em deserto, covil de chacais."(Jeremias 10)

"Profeta da ruína" torna-se o cognome de Jeremias, e mesmo assim multidões aglomeram-se para escutá-lo. Às vezes, um estranho temor apodera-se dos ouvintes diante das palavras deste profeta tão diferente dos que, nos pátios do Templo, proferem discursos elegantes. Baruc, o discípulo, começa a anotar as profecias e visões do mestre, entre elas formulações poéticas que se tornarão proverbiais em todo o mundo, como "o cordeiro que é levado ao matadouro", "separar o joio do trigo", "barro na mão do oleiro", ou a figura do ceifador como espectro da morte.

Um dia, Jeremia troca a praça pública pelo pátio do Templo, pois Lei e culto estão sendo espezinhados. O profeta está desencantado com a centralidade do culto em Jerusalém como resultado da reforma de Josias. Não trouxe a esperada pureza na adoração de Deus:

"Não confieis em palavras vãs que dizem:
Templo do Senhor é este !
Depois de roubar, matar e adulterar,
as pessoas vêm aqui dizendo 'estamos absolvidos !'
É minha Casa um covil de ladrões ?" (Jeremias 7)

O povo não está disposto a acreditar nesse tipo de oráculo, não admite que ao Templo de Jerusalém possa acontecer o que aconteceu a Bet-El, da Samária. Baruc tenta retirar o mestre, pois a multidão está furiosa. Mas Jeremias não cala:

"Ouví, ó povo, a sentença do Senhor:
'Eu destruirei este lugar diante de vossos
olhos e em vossos dias. A morte entrará
pelas janelas e crianças jovens tombarão
nas ruas. Seus corpos cairão qual feixes às
mãos do ceifador e não haverá quem os coletará'."

Os mais exaltados tentam agredí-lo, inclusive sacerdotes, profetas populares, homens da corte. Um grupo de "oficiais de Judá" intervém para manter a ordem e Jeremias consegue retomar a palavra:

"Foi Deus que me mandou proferir contra este povo
e esta cidade as palavras que ouvistes.
Portanto, reformai vossa vida a fim de que Deus
afaste de vós o mal que vos ameaça.
Quanto a mim, fazei o que quiserdes."

Ele está aliviado por ter dito o que tinha a dizer, feito o que tinha que fazer. O povo e os oficiais afastam os sacerdotes e profetas furiosos e, por fim, vence o consenso de que "Este homem não merece a morte, pois falou em nome do Senhor". (Jeremias 26)

Jeremias escapa dos populares, mas não da zanga dos sacerdotes. Ao invés de fazer dele um mártir, decidem ridicularizá-lo: metem-no no pelourinho, onde fica durante 24 horas exposto ao gáudio popular como criminoso comum.

O profeta lamenta-se: "Maldito o dia em que nasci, maldito o homem que a meu pai levou a notícia: Nasceu-te um filho ! - pensando que ia alegrá-lo. Por que, mãe, tive que nascer ? Dor somente, e tristezas vivo, tormentos e misérias, e vergonha." (Jeremias 20:14)

Cada dia da vida de Jeremias é um sofrimento. E a voz Dele não para, a alma do profeta não cessa de ver infortúnios, e todo dia brotam novas palavras angustiantes. Baruc fielmente anota tudo e, em pouco tempo, já tem um grande rolo com a íntegra das palavras e das visões do mestre.
(...)

Correm boatos em Jerusalém de que a corte trama uma conjura contra a Babilônia. Jeremias envia Baruc ao Templo para que aí faça uma leitura pública das suas advertências, a fim de mobilizar a opinião popular. O discípulo lê o pergaminho no pátio do Templo, num dia de grande aglomeração, causando enorme comoção, inclusive entre altos funcionários do governo, partidários da paz.

Eles estão chocados com as terríveis consequências da frívola política real anunciadas pelo profeta, e decidem encaminhar o documento a Joiaquim. "Estava o rei sentado em frente a um braseiro aceso, e na medida em que o secretário lia três ou quatro colunas, o rei as cortava e atirava às chamas, desprezando os rogos dos seus ministros." (Jeremias 36)

Jeremias responde com um manifesto à nação:

"Palavra do Senhor. Há vinte e três anos falo-vos para que renncieis todos e cada um de vós à maldade e aos ídolos que vossas mãos fabricaram ! Já que não escutastes minhas palavras vou conclamar Meu servo Nabucodonosor contra este país. Esta terra converter-se-á em angústia e solidão e por setenta anos servireis ao rei da Babilônia. Só decorridos estes setenta anos é que castigarei o rei da Babilônia e transformarei o país dos caldeus em deserto." (Jeremias 25)

Os que entendem a linguagem bíblica ficam chocados: a expressão "meu servo" é uma distinção, a Bíblia a reserva para muito poucos: Abrahão, Moisés, David, alguns dos grandes profetas - mas Nabucodonosor ! É que Jeremias, prosseguindo nos passos de Isaías ("A Assíria, vara da minha ira" Is. 10:5), recorda ao povo que não existe confinamento para o poder divino, JAVÉ não é uma divindade tribal, chamar o rei babilõnico de instrumento dos desígnios divinos é uma maneira de Deus manifestar Sua autoridade sobre tudo e todos.

De nada adiantam as palavras do profeta. Robustecido em sua leviandade por um pacto militar com o Egito, Joiaquim desafia a Babilônia, suspendendo o recolhimento dos tributos devidos. Inicialmente tudo corre bem, pois Nabucodonosor tem problemas a resolver em outras regiões do Império e Jeremias e seus partidários passam vexame, são chamados de covardes e traidores e cobertos de desprezo.

Joiaquim morre subitamente, ainda sob a ilusão de ter sido vitorioso. O problema passa para seu filho Jeoiaquin. Mal terminam os festejos de sua coroação e chega a Jerusalém a notícia da aproximação de Nabucodonosor à frente de um poderoso exército. Judá, como de praxe abandonada por anos, rei somente há algumas semanas, demonstra a coragem da covardia: manda abrir os portões da cidade e coloca-se à mercê do rei da Babilônia, acompanhado no seu gesto de toda família real.
(...)

Jeremias sabe que o dia do regresso está longe: setenta anos era sua visão profética. Ele envia uma epístola aos exilados dizendo: "Edificai casas e habitai nelas, plantai hortas e comei seus frutos, tomai mulheres e gerai filhos, multiplicai-vos em vez de diminuir ! Buscai o bem da cidade para onde fostes exilados. Tão logo se completem 70 anos, Deus vos fará voltar." (Jeremias 29:5)

Mas, em Babel e em Jerusalém há muitos "profetas" que instigam, provocam, tecem intrigas e exortam os patriotas a rebelar-se, chamando Jeremias de traidor. Um deles é Hananias quem anuncia à multidão reunida no pátio do Templo e na presença do rei e dos embaixadores estrangeiros: "Palavra do Deus de Israel: Vou romper o jugo do rei da Babilônia e daqui a dois anos farei voltar Jeoiaquin e todos os deportados !" (Jeremias 28:11)

Mal Hananias acaba de falar, a massa popular abre caminho para uma estranha aparição - é Jeremias, os pés arrastando grossas correntes iguais às usadas pelos prisioneiros de guerra, e sob seus ombros carrega um pesado jugo:

"Ao rei de Edom, rei de Moab e rei de Amon ! Rei de Tiro, rei de Sidon e tu, Sedecias, rei de Judá: Assim diz o Senhor: Eu fiz a terra e os homens e entreguei-os a Nabucodonosor, Meu servo. Vossos profetas e adivinhos só falam mentiras. Sedecias, rei de Judá: metei vosso pescoço no jugo do rei da Babilônia, servi-o e vivereis !" (Jeremias 27)

Jeremias tira o jugo dos ombros e estende-o a Sedecias numa muda súplica: "Toma sobre ti este jugo e salva teu povo e teu país." Mas Hananias, postado ao lado do rei, bruscamente arranca o jugo das mãos de Jeremias, quebra-o ao meio e arremessa os pedaços aos pés do profeta: "Assim fala o Senhor, Deus de Israel: Eu quebrei o jugo do rei da Babilônia !"

A multidão delira e aplaude, Jeremias ergue as mãos e no silêncio que se faz a seu gesto, diz com desprezo e dor: "Hananias, um jugo de madeira quebraste. Jugos de ferro nos esperam ! E tu, Hananias, ainda este ano morrerás, pois falaste mentiras em nome do Senhor !" (Jeremias 28)

Hananias morreria sete meses depois, sem presenciar os frutos de sua agitação. (...)

Assumindo pessoalmente o comando de um formidável exército, Nabucodonosor marcha sobre Judá. Mais uma vez abandonadas por seus aliados, as cidades interioranas caem rapidamente e só a capital continua resistindo. A estratégia de Nabucodonosor é de deixar todos entrarem, mas ninguém sair. Jerusalém fica abarrotada de refugiados e a fome se alastra.

Os ouvidos do rei abrem-se novamente à voz do profeta. Há muito que Jeremias se empenhara a fundo na solução de um dos grandes problemas sócio-religiosos da nação: a aplicação do preceito bíblico da libertação dos servos a cada sete anos, mandamento amplamente descumprido. Em obediência ao profeta e para aplacar a ira divina, Sedecias agora "proclama um decreto de alforria e todos aceitaram este acordo." (Jeremias 34:8)

Uma vez mais Jerusalém é salva milagrosamente: a notícia do avanço de uma poderosa força expedicionária egípcia faz Nabucodonosor levantar o cerco da cidade e marchar de encontro ao inimigo. O povo dança nas ruas e, para horror de Jeremias, os escravos recém-libertados são caçados e retornados à servidão.

Sem maiores dificuldades, Nabucodonosor desbarata as forças egípcias e reinicia o cerco de Jerusalém. Sede, fome, doenças e desordem reinam na cidade. Sedecias convoca Jeremias outra vez, mas o veredicto já não pode ser mudado: "Traíram a promessa sagrada, profanaram Meu Nome, violaram Minha Aliança - Nabucodonosor tomará esta cidade e a destruirá !" (Jeremias 32:28)

Jeremias acrescenta à sentença o aviso de que só uma rendição incondicional e um apelo à clemência do rei da Babilônia podem evitar uma calamidade total. Acusado de alta traição, ele é encarcerado, mas Sedecias manda pô-lo em liberdade. Daí a pouco, o profeta é novamente preso, pois não cessa de pregar a submissão.

Num insólito gesto simbólico, Jeremias proclama sua fé no futuro de Israel: em meio à derrocada da ordem social, os ricos enterrando seus tesouros e os pobres vendendo suas propriedades a preços vis, Jeremias compra, de um primo que veio se refugiar em Jerusalém, um pedaço de terra em Anatot, sua cidade natal.

É uma terra completamente inútil neste momento e a adquire por um preço, nas circunstâncias, absurdo, unicamente para que as propriedades permanecesse no patrimônio da família. Do cárcere, perante as testemunhas prescritas em lei, Jeremias ben Helcias concretiza a bizarra transação, proclamando:

"Casas, campos e vinhas continuarão
a ser compradas nesta terra.
O Senhor reunirá os exilados e os
trará aqui para que habitem em segurança,
e solidamente os colocará nas montanhas
e nas planícies de Judá !" (Jeremias 32)

Após meses de tenaz resistência, aparecem as primeiras brechas nas muralhas de Jerusalém. Sedecias e uma forte escolta tentam escapar, mas à altura de Jericó toda a comitiva é capturada e levada ao quartel general de Nabucodonosor. A sentença é impiedosa. Os filhos do rei são degolados ante as vistas do pai, que em seguida tem seus olhos vazados. Arrastam-no, cego e acorrentado, para a Babilônia, onde fica encarcerado até sua morte. Era o último da longa linhagem de reis de Judá iniciada por David, há mais de quatrocentos anos. Se a esses quatro séculos acrescentar-se os mil e quinhentos anos em que os descendentes da Casa de David viriam a liderar o povo durante o exílio babilônico, tem-se a mais duradoura dinastia de toda a História.

No dia 9 de Av (586), cai Jerusalém. As muralhas da cidade são niveladas, o palácio real incendiado, os objetos de culto de ouro e de bronze do Templo são desmantelados e levados para Babel. Finalmente, o Templo de Salomão é incinerado. Curiosamente, entre a detalhada lista dos tesouros que os babilônicos carregaram, não há menção da Arca Sagrada. Aliás, já fazia muito tempo - desde Salomão, na verdade - que não se falava dela, nem mesmo durante as reformas de Josias. O mais venerado objeto de culto da história de Israel desaparece de cenas sem nenhuma menção, deixando atrás de si apenas um véu de mistério.