Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

25/04/2008

Asas cortadas
Lendro Konder -- Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 417-418

Questionada até então acerca de seu valor utilitário, somente nos anos 50 a filosofia começa a recuperar o espaço que lhe é próprio.

Quem somos nós ? Para onde vamos ? Quais são, exatamente, as responsabilidades que temos, uns em relação aos outros ? O que devemos considerar como essencial na nossa vida ? Em que medida podemos confiar nos nossos conhecimentos ? Essas e outras questões de natureza filosófica têm-se colocado no caminho dos brasileiros mais ou menos com a mesma insistência desafiadora com que se têm apresentado a todos os povos do mundo.

Por serem muito amplas, muito gerais, as questões de que se ocupa a filosofia desbordam do campo particular de cada ciência e nos põem em contato com a infinitude do real, com a irredutibilidade do real ao saber. Os homens são levados a buscar respostas nas ciências (ou na religião), mas as perguntas reaparecem sempre, numa clara demonstração de que se referem a problemas que não admitem soluções definitivas.

Não é preciso ser um sábio para filosofar. Todos filosofamos, quando procuramos fundamentar nossas opiniões sobre a vida em geral, sobre o mundo, sobre o futuro da humanidade, sobre o que é justo e injusto. Mas o aprofundamento da reflexão filosófica depende de estudos e discussões, depende de esforço e disciplina.

A filosofia se manifesta espontaneamente, no pensamento cotidiano, mas, para produzir todos os seus frutos, demanda um laborioso aprendizado. E esse aprendizado, por sua vez, requer investimentos; sua importância precisa ser efetivamente reconhecida pela sociedade.

Quais têm sido as condições proporcionadas pela sociedade brasileira à filosofia ? Dificilmente elas poderiam ter sido mais hostis do que foram. As classes dominantes nunca se preocuparam com problemas estratégicos: bastava-lhes improvisar medidas paliativas, manobras táticas de efeito imediato. Uma estrutura elitista e rudemente autoritária mantinha as massas populares desorganizadas, impossibilitadas de participar nos processos em que se decidiam as grandes questões nacionais.

Tanto a vida política como a vida cultural giravam em torno de um número extremamente reduzido de pessoas. As controvérsias não se aprofundavam teoricamente, porque ficavam marcadas pela estreiteza de horizontes dos grupos oligárquicos e das pequenas confrarias de privilegiados.

Difundia-se a convicção, cada vez mais generalizada, de que a qualidade da argumentação, não tinha nenhuma importância: o que contava era a qualidade - o poder - de quem estava no palco da política e da cultura. A filosofia sofria pressões instrumentalizadoras. Para que empenhar-se em ter razão, se isso não valia de nada, se o que realmente importava era ter força ? Para que tratar de articular laboriosamente o pensamento e desenvolver sua capacidade de persuasão no confronto sério de correntes de interpretação diversas ?

Valia mais a pena investir as energias intelectuais na preparação e execução de "golpes" pragmaticamente capazes de derrubar os adversários, os rivais.

Os debates se davam em torno de posições predeterminadas

O público que podia acompanhar as polêmicas era muito reduzido; e os poucos cidadãos a que os debatedores se dirigiam já tinham posição tomada, estavam filiados a um ou ao outro dos dois lados em choque: ou não aceitariam nunca o pensamento exposto ou já o tinham aceitado previamente. O que importava então era o impacto e não a solidez do raciocínio. A "torcida" esperava jogadas brilhantes ou truculentas e os jogadores tratavam de lhe dar o que ela queria: piruetas retóricas, esquemas simplistas, sarcasmo grosseiro, insultos.

A crítica de idéias escorregava facilmente para as ofensas pessoais. Jorge Amado ridicularizava as "gordas nádegas" de Gustavo Barroso. Luís Carlos Prestes chamou Juarez Távora, no começo dos anos 30, de "imbecil" e de "safadíssimo", sem que ocorresse a qualquer dos seus contemporâneos observar-lhe que havia incoerência no xingamento, já que a safadeza, em grau superlativo, exige uma esperteza que é incompatível com a imbecilidade.

Vivia-se numa sociedade na qual as idéias valiam muito menos pelo conhecimento que podiam do que por seu uso "pugilístico" (ou como instrumento para obtenção de prestígio). O imediatismo, o utilitarismo e o pragmatismo cultivados pela ideologia dominante cortavam as asas da teoria, tornavam a reflexão incapaz de grandes vôos. A ideologia dominante interpelava, cinicamente: "Para que serve a filosofia ?" Se não servia para nada - se não se dispunha a servir - era caracterizada como pura perda de tempo. O sistema que roubava o espaço em que a filosofia podia florescer tinha o desplante de condená-la por não possuir um espaço próprio.

Essa situação, evidentemente, teve reflexos muito negativos sobre a elaboração filosófica entre nós. Acumulavam-se os obstáculos nos caminhos daqueles que procuravam criticar as falácias da linguagem, as ilusões do dado, os enganos da aparência. Tanto os católicos tradicionalistas como os positivistas de diversos matizes revelaram-se incapazes de aprender toda a riqueza das mediações e toda a complexidade das contradições da nossa realidade.

Os nossos filósofos ficavam, com freqüência, reduzidos à condição de epígonos dos pensadores europeus, diante dos quais eram levados a assumir postura reverencial. Quando tentavam reagir e procuravam ser originais, a ideologia dominante os desviava para inócuas combinações ecléticas ou os seduzia com máscaras bizarras provincianas. E depois essa mesma ideologia dominante tratava de convencer o grande público com a tese de que tudo acontecia porque o brasileiro não tinha "vocação para a filosofia".

Pressionada, a filosofia deslocou-se para a literatura

Apesar de toda essa pressão hostil, a filosofia não desapareceu da vida cultural brasileira. Nossos intelectuais, ao longo dos séculos, abordaram temas filosóficos. Os que insistiram em fazê-lo de forma sistemática expuseram suas idéias à erosão do ambiente adverso e não conseguiram nos legar grandes realizações.

Independentemente de sua coragem cívica, o materialista baiano Domingos Guedes Cabral (1852-1883) não nos ajuda a compreender melhor as relações entre o cérebro e o pensamento. O franciscano Mont'Alverne (1784-1858) não acrescentou nada às idéias - que, em si mesmas, já eram poucas significativas - do francês Victor Cousin. Miguel Lemos (1854-1916) se limitou, no essencial, a divulgar o pensamento de Comte.

Mas a filosofia, reagindo contra essa erosão, se deslocou para um terreno onde não podia se desenvolver de forma sistemática, porém conseguia sobreviver: foi acolhida nas artes e na literatura. E o resultado é que as obras de alguns artistas e escritores brasileiros apresentam acenos filosóficos que chegam a oferecer interesse maior que o dos esforços metódicos dos nossos pensadores.

Um exemplo disso ? Machado de Assis. Se compararmos os "momentos" filosóficos de Machado ao tratado que seu contemporâneo Farias Brito (1864-1917) dedicou à 'Finalidade do MUndo', não poderemos deixar de constatar que o pensamento do autor do 'Quincas Borba' está mais vivo que o do outro. Também o poeta Carlos Drummond de Andrade pode ser lembrado para confirmar o que dizemos: os fragmentos de filosofia que se acham em sua obra parecem bem mais instigantes que as idéias sistematizadas pelo douto jesuíta Leonel Franca (1893-1948).

Nestas últimas três décadas, com o surto de desenvolvimento capitalistas, estão surgindo possibilidades novas para a filosofia no Brasil; ela está lutando para recuperar o terreno que lhe é próprio. Estáa mostrando vitalidade e ambição. Alguns êxitos que ela já obteve são animadores: o pensamento, entre nós, está se universalizando.

Um estudioso europeu, hoje, teria certamente algo a aprender lendo, por exemplo, escritos de Gerd Bornheim sobre Sartre, de Marilena Chauí sobre Espinoza, de Carlos Nelson Coutinho sobre Gramsci, de Bento Prado Júnior sobre Rousseau, de José Arthur Gianotti sobre Marx, de Emanuel Carneiro Leão sobre Heidegger, ou de Henrique Cláudio de Lima Vaz sobre Hegel. Mas o que é mais importante é que os brasileiros, lendo esses nossos compatriotas, poderão ver a filosofia alçando vôo, com asas novas...