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04/06/2009

O Estudante e o Tanque

Um estudante enfrenta uma fila de tanques na China.

Foto da Revista Time

O desconhecido da camisa branca - 4 de junho de 1989

Texto do Arquivo da Revista Veja (14/06/1989)

Um cidadão anônimo enfrenta sozinho os Urutu chineses, desafia os assassinos do povo e avança a História.

O homem sozinho, com uma jaqueta numa das mãos e um embrulho na outra, com um ar de quem tanto podia ter saído de uma manifestação como estar a caminho do trabalho ou das compras. Um homem de camisa branca e calças pretas. Um chinês num oceano de 1,1 bilhão de chineses. Um desconhecido. Sobre a montanha de cadáveres com a qual o regime chinês reafirmou a sua tirania na semana passada, ao reprimir com punho impiedoso os estudantes reunidos na Praça da Paz Celestial, esse cidadão anônimo fixou uma imagem poderosa. Durante seis minutos, na manhã da última segunda-feira, o homem da camisa branca brincou de dançar com a morte. Sozinho, em plena Avenida da Paz Eterna, ele enfrentou uma coluna de tanques.

A cena foi registrada pelas câmaras e estarreceu o mundo inteiro. De frente para o tanque que liderava a coluna, o cidadão desconhecido parou uma fileira de 23 mastodontes blindados. Em seguida, subiu no primeiro tanque. "Porque vocês estão aqui?", gritava. Sem resposta, desceu. E continuou na frente do Urutu chinês. O tanque tentou desviar para a direita, o homem interrompeu a passagem. Voltou para o centro, lá estava ele de novo. O balé letal só terminou quando um grupo de pessoas avançou e tirou o toureiro de tanques do meio da avenida. Ao contrário de outro episódio famoso - o do cidadão checo, outro anônimo, que na invasão soviética de 1968 abriu o peito, nu diante de um tanque, em Bratislava, e foi fulminado -, o homem da camisa branca escapou ileso, transformado em protagonista de um dos momentos-síntese da História, aqueles "em que pessoas comuns de repente se põem a fazer coisas extraordinárias", como observou Richard Collen, do jornal Washington Post.

Quem, numa situação semelhante, teria coragem de fazer a mesma coisa? O que move essas pessoas? Pode ser raiva, desespero, pode ser uma idéia. Sabe-se, no entanto, o que essas pessoas movem. Lá, em seu anonimato, elas movem a História. Perdem ou ganham. Às vezes, mesmo perdendo, ganham. Foram massas anônimas que tomaram a Bastilha, fizeram as revoluções na Rússia, encheram as fileiras da Longa Marcha - o movimento que culminou com a instauração do regime comunista na China. Deng Xiaoping, o tirano travestido de reformista, é um veterano da Longa Marcha que não aprendeu a lição.

Encerrado atrás dos portões; da Praça da Paz Celestial, onde já reinaram imperadores, senhores da guerra e líderes revolucionários, ele podia comemorar na semana passada a vitória sobre os estudantes, sobre os cidadãos comuns que gostaram da idéia de ter mais democracia, sobre o homem da camisa branca. O sangue dos mártires, contudo, é o alimento da rebelião. A revolta gerada pelo massacre de Pequim acrescenta assim um segundo elemento, explosivo, ao quebra-cabeça instaurado na China. O primeiro já havia sido produzido pelos milhões de chineses que aderiram ao movimento pela democracia.

Pode ser resumido na avaliação feita pela pensadora Hannah Arendt depois de outra revolta popular contra a opressão, a de 1956 na Hungria. "A natureza humana é imutável", escreveu ela. "Mesmo na ausência de todo ensinamento e na presença da doutrinação esmagadora, um anseio de liberdade e verdade sempre surgirá do coração e da mente do homem."

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