Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

31/05/2009

Cinzas da Inquisição
Affonso Sant’anna
Até agora fingíamos que a Inquisição era um episódio da história européia, que tendo durado do século XII ao século XIX, nada tinha a ver com o Brasil. No máximo, se prestássemos muita atenção, íamos ouvir falar de um certo Antônio José — o Judeu, um português de origem brasileira, que foi queimado porque andou escrevendo umas peças de teatro.

Mas não dá mais para escamotear. Acabou de se realizar um congresso que começou em Lisboa, continuou em São Paulo e Rio, reavaliando a Inquisição. O ideal seria que esse congresso tivesse se desdobrado por todas as capitais do país, por todas as cidades, que tivesse merecido mais atenção da televisão e tivesse sacudido a consciência dos brasileiros do Oiapoque ao Chuí, mostrando àqueles que não podem ler jornais nem freqüentar as discussões universitárias o que foi um dos períodos mais tenebrosos da história do Ocidente. Mas mostrar isso, não por prazer sadomasoquista, e sim para reforçar os ideais de dignidade humana e melhorar a debilitada consciência histórica nacional.

Calar a história da Inquisição, como ainda querem alguns, em nada ajuda a história das instituições e países. Ao contrário, isto pode ser ainda um resquício inquisitorial. E no caso brasileiro essa reavaliação é inestimável, porque somos uma cultura que finge viver fora da história.

Por outro lado, estamos vivendo um momento privilegiado em termos de reconstrução da consciência histórica. Se neste ano (1987) foi possível passar a limpo a Inquisição, no ano que vem será necessário refazer a história do negro em nosso país, a propósito dos cem anos da libertação dos escravos. E no ano seguinte, 1989, deveríamos nos concentrar para rever a ‘república’decretada por Deodoro. Os próximos dois anos poderiam se converter em um imenso período de pesquisas, discussões e mapeamento de nossa silenciosa história. Universidades, fundações de pesquisa e os meios de comunicação deveriam se preparar para participar desse projeto arqueológico, convocando a todos: ‘Libertem de novo os escravos’, ‘proclamem de novo a República’.

Fazer história é fazer falar o passado e o presente criando ecos para o futuro.

História é o anti-silêncio. É o ruído emergente das lutas, angústias, sonhos, frustrações. Para o pesquisador, o silêncio da história oficial é um silêncio ensurdecedor. Quando penetra nos arquivos da consciência nacional, os dados e os feitos berram, clamam, gritam, sangram pelas prateleiras.

Engana-se, portanto, quem julga que os arquivos são lugares apenas de poeira e mofo. Ali está pulsando algo. Como num vulcão aparentemente adormecido, ali algo quer emergir. E emerge. Cedo ou tarde. Não se destrói totalmente qualquer documentação. Sempre vai sobrar um herege que não foi queimado, um judeu que escapou ao campo de concentração, um dissidente que sobreviveu aos trabalhos forçados na Sibéria. De nada adiantou aquele imperador chinês ter queimado todos os livros e ter decretado que a história começasse com ele.

A história começa com cada um de nós, apesar dos reis e das inquisições.

(SANT’ANNA, Affonso, R. de. A raiz quadrada do absurdo. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. p. 196-8.)