Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

28/12/2008

Memória do mal, tentação do bem
Tzvetan Todorov

Fichamento do Leonildo
1- (...) No mundo moderno, seja ele democrático ou totalitário, um ato da magnitude do bombardeio nuclear exige a participação de numerosos agentes e a fragmentação da responsabilidade entre múltiplos elos, de modo a que nenhum deles se perceba como diretamente responsável por eventuais conseqüências nefastas. Todos sentem a pressão das circunstâncias e a exigência da comunidade a pesar sobre eles. Todos pensam em termos de meios, não de fins. Os pilotos que soltam as bombas não se crêem responsáveis, evidentemente: estão apenas obedecendo às ordens; de resto, sentem que têm razão de agir assim (estão poupando um milhão de vidas americanas !). Se, no momento do ato, algum remorso desperta em sua consciência, eles logo o adormecem com fórmulas mágicas, eufemismos engraçados: apelidaram de "Little Boy" a bomba de Hiroshima, de "Fat Man" a de Nagasaki. Os físicos que preparam o mecanismo estão encantados por serem capazes de realizar semelhante proeza. O presidente e seus conselheiros fazem o que lhes recomendam os militares competentes - os quais, por sua vez, obedecem à lógica de um movimento do qual não são os iniciadores: os políticos lhes pediram que encontrassem uma solução para a crise fazendo a guerra, e eles a acionam com os meios de que dispõem, bombas incendiárias e atômicas. (...)

2- (...) São múltiplas as lições dos bombardeios a Hiroshima e Nagasaki; aqui, retenho apenas as que nos concernem diretamente. Primeiro, o registro de que as potências totalitárias não são as únicas a participar do mal, embora o genocídio dos camponeses ucranianos ou o dos judeus europeus tenham mais peso: um crime não deixa de ser crime porque outro mais grave foi cometido em outro lugar. Esse mal novo, contudo, é praticado em nome do bem - não só de um bem tautologicamente idêntico ao desejo de cada sujeito, mas de um bem a que aspiramos sempre: a paz e a democracia. Aqui, o mal se realiza segundo outros caminhos, não decorre de uma ideologia cientificista, não acompanha a conquista do poder absoluto. Ele é o produto marginal - mas quão doloroso ! - do combate contra um mal ainda maior. É apenas, dizem-nos, o meio, talvez lamentável mas inevitável, posto a serviço de um fim que permanece nobre. É também o efeito de um pensamento que se esquece de coordenar meios e fins. (...)

3- (...) O totalitarismo pode às vezes aparecer-nos, a justo título, como o império do mal; mas disso não decorre em absoluto que a democracia encarne, por toda parte e sempre, o reinado do bem. (...)

4- (...)Não tentarei desacreditar uma opinião, nem em razão de sua origem nem em função do uso que se poderia fazer dela. Não era por ser Goebbels a acusar os soviéticos de serem os responsáveis por Katyn que essa afirmação deixava de ser verdadeira. Não é porque Billancourt ficará desesperado nem porque a extrema direita ronda nossas cidades que convém dissimular a verdade sobre os regimes comunistas: no debate público, toda verdade é boa de ser dita. Também não quero facilitar minha tarefa formulando oposições cuja escolha está decidida de antemão: você é a favor da barbárie ou da civilização? Da guerra ou da paz ? Quer salvar as crianças ameaçadas ou deixar que as massacrem ? Prefere os assassinos ou as vítimas deles ? Isso seria imitar Lenin, que, no dizer de Grossman, buscava no debate somente a vitória, não a verdade. Talvez tenha chegado o momento, esta é minha esperança, de examinar esse episódio de nossa história recente com um pouco mais de serenidade, sem deixar-se levar pelas vagas da paixão.(...)

5- (...)Todos os dirigentes desses novos países parecem obedecera ao mesmo princípio: uma etnia, um Estado. Isso provoca deslocamentos de populações, designados pela expressão "purificação étnica" e semelhantes aos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra mundial: poloneses obrigados a deixar as terras anexadas pela União Soviética, alemães deslocados das regiões agora vinculadas à Polônia, e assim por dinte. (...)

6- (...) Ora, esse princípio de coincidência entre Estado e etnia, convém insistir, é tudo menos incontestável, e isso por duas grandes séries de razões. A primeira é da ordem dos fatos. A frase "direito dos povos à autodeterminação", tão frequentemente invocada nesse contexto, não tem um sentido preciso, pois implica que os povos existam anteriormente à formação de um Estado, o que é uma ilusão. Porque, evidentemente, não se chama de 'povo' qualquer grupo étnico - seja qual for a definição que se dê a essa expressão. Quero lembrar que existem hoje no mundo cerca de duzentos Estados, mas seis mil grupos linguisticos e cinco mil grupos étnicos menos ou mais claramente identificados. Além disso, como todo mundo sabe, as características culturais não se repartem de maneira regular, os contornos religiosos não coincidem com os grupos linguisticos e muito menos com os tipos físicos. O passado comum - ou o inimigo comum - às vezes cria solidariedades mais fortes do que as produzidas pela língua e pela religião. Em suma, o sonho (que, para alguns, pode parecer um pesadelo) de uma superposição perfeita entre território, população e Estado é irrealizável.

7- Ademais, esse sonho é estranho ao espírito democrático. De fato, ele exige encerrar o indivíduo numa identidade que lhe é atribuída por seus parentes e pelas circunstâncias de seu nascimento, em vez de deixar-lhe a possibilidade de manifestar a autonomia de julgamento. O Estado étnico apresenta-se como um Estado Natural; o Estado democrático, ao contrário, deve ser pensado como um Estado contratual, cujos habitantes são sujeitos em pleno uso de sua vontade, e não simples representantes de uma comunidade, submetidos à sua identidade física ou cultural.

8- De fato, o Estado democrático não é uma comunidade de sangue, nem somente de origem; ele também deixa a cada um a possibilidade de exercer sua liberdade e escapar às determinações que sofre. Esse Estado absorve comunidades diversas, adotando um contrato que rege tais diferenças: ora sobre o modelo da tolerância ou do laicismo (a religião é um assunto privado, todas as religiões, tanto quanto a recusa à religião, podem ser praticamente numa democracia moderna), ora sobre o da unidade (a maioria dos países ocidentais, para citar esse outro exemplo, dispõe de uma só lingua oficial).

9- O regime democrático jamais pretende obter uma homogeneização cultural ou 'étnica'do país, mas somente preservar os direitos dos indivíduos, entre os quais figura também o direito de pertencer a uma minoria cultural.

10- Em nome desse princípio, procura-se combater os estereótipos degradantes relativos aos grupos minoritários, ou permitir a estes últimos que pratiquem também sua língua, sua religião e suas tradições. Com isso, consigna-se o fato de que as populações se misturam e se deslocam desde tempos imemoriais, e renuncia-se a reservar exclusivamente uma terra qualquer a uma população precisa.

11- Portanto, à diferença dos direitos do indivíduo ou do respeito pelas minorias, o princípio da pureza étnica não tem qualquer afinidade com o Estado democrático; (...)

12- (...)É uma história bem conhecida: acredita-se de bom grado que é preciso encorajar o nacionalismo da população submetida, quando se trata de libertá-la de uma tutela ao mesmo tempo opressiva e estrangeira. Nada garante, contudo, que o novo poder, autóctone desta vez, não venha a ser mais opressivo ainda - sem falar que se terá apoiado, enquanto isso, o princípio não-democrático da homogeneidade nacional e do Estado natural. (...)