Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

06/01/2008

A prova de redação da Fuvest
A prova de redação da Fuvest, como sempre, é muito sugestiva e reflexiva. Sugere idéias e pensamentos em vários níveis.

A prova de hoje, certamente, sugeriu várias coisas na minha cabeça. Contudo, dentre estas coisas, a mais forte veio do primeiro texto, que trata da tal "vigilância epistêmica".

O texto diz o seguinte:
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"Vigilância epistêmica* é a preocupação que todos nós deveríamos ter com relação a tudo o que lemos, ouvimos e aprendemos de outros seres humanos, para não sermos enganados, para não acreditarmos em tudo o que é escrito e dito por aí. É preciso vigiar o futuro para sabermos separar o joio do trigo**.

Hoje boa parte dos sites de busca indexam tudo o que encontram pela frente à internet, mesmo que se trate de uma grande bobagem ou de evidente inverdade. Qualquer opinião emitida, vista como um direito de todos, é divulgada aos quatro cantos do mundo. De fato, alguns desses sites de busca deveriam colocar, nos primeiros lugares, páginas de renomadas Universidades, preocupadas com a verdade.

Todos precisamos estar muito atentos a dois aspectos com relação a tudo o que ouvimos e lemos: se quem nos fala ou escreve conhece a fundo o assunto, se é um especialista comprovado, se sabe do que está falando; se quem nos fala ou escreve, na verdade, é um idiota que ouviu falar algo e simplesmente repassa, aos outros, o que leu e ouviu, sem acrescentar absolutamente nada de útil.

Aumentar nossa vigilância e preocupação com a verdade é necessidade cada vez mais premente num tempo que todos os gurus chamam de Era da Informação.

Discordo, profundamente, desses gurus. Estamos, na realidade, na Era da Desinformação, de tanto lixo e ruído sem significado que, na maior parte das vezes, nos são transmitidos, todos os dias, eletronicamente, sem que exista o menor cuidado com a precisão e seriedade do que se emite, por parte das fontes que colocam matérias na rede. É mais uma conseqüência dessa idéia que a maioria das pessoas tem sobre a liberdade de expressar o que bem quiser, de expressar qualquer opinião que seja, como se opiniões não precisassem se basear no rigor científico, antes de serem emitidas.

Stephen Kanitz, Revista Veja, 03/10/2007. Adaptado.

* Vigilância epistêmica = capacidade de ficar atento e perceber se uma afirmação tem ou não valor científico.

** Separar o joio do trigo = no contexto, capacidade de diferenciar observações equivocadas, mentiras mesmo, de outras afirmações que contêm verdades.
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O que prendeu a minha atenção neste texto, e se eu tivesse feito a redação seria sobre isto, é o fundamentalismo epistêmico. Sinto cheiro de autoritarismo e totalitarismo de longe. E este texto é autoritário. Isto pode ser detectado na primeira palavra do texto "vigilância". Vigilância significa controle. Significa dominação. Inclusive, Foucault tem um livro chamado "Vigiar e Punir" que analisa vários aspectos da sociedade de controle.

Esta primeira constatação já me leva à segunda: vigilância, controle e internet não combinam e nem se mistuaram. A filosofia fundamental da internet, a essência desta rede, é a abertura, a democracia da informação, a capacidade das pessoas se expressarem livremente e postarem o que quiserem. É uma filosofia que não suporta o termo vigilância.

Certamente, é preciso existir conteúdos relevantes e certificados em locais específicos. E as pessoas que querem conhecimentos certificados devem acessar estes locais. Portanto, nestas áreas pode-se falar em vigilância epistêmica, mas fora delas, nem pensar.

Inegavelmente, vigilância epistêmica é coisa de autoritários e totalitários. Inclusive, eu gostei do termo "vigilância epistêmica"... Acho que vou usá-lo no meu trabalho sobre totalitarismo. Vou falar coisas do tipo: "a vigilância epistêmica do nazismo excluia a arte dos judeus... Hitler fazia vigilância epistêmica nas escolas..., etc".

Outro argumento que eu utilizaria na redaçãos seria: a internet é um mar de cultura que está cobrindo o planeta. É possível falar em vigilância epistêmica no universo da cultura ? Quem faria esse tipo de vigilância ? Mais do que isto, na maior parte de nossas vidas, de nossas conversas, de nossas relações, etc, não utilizando nenhuma espécie de vigilância epistêmica. Logo, por que faríamos isto em nossos emails, no orkut, no MSN, etc ?

Há, sem dúvida nenhuma, um fundamentalismo epistêmico permeando todo o texto em análise. Isto pode ser visto na idéia de vigilância, no tal "epistêmico" como regra de vigilância e na exacerbação do científico.

Em outras palavras, ninguém quer ser vigiado em suas ações. Ninguém acessa a internet só para receber conhecimentos relevantes. As pessoas também acessam para ler coisas irrelevantes, piadas, notícias de jornal, filmes, pornografia, enfim, para se divertirem. Neste caso, pelo visto, a tesoura da "vigilância epistêmica" cortaria tudo fora.

Além disso, a exacerbação do científico exclui os outros tipos de conhecimento. E tudo aquilo que não é científico corre o risco de ser excluído e censurado pela tal "vigilância epistêmica". Por exemplo, o conhecimento religioso.

Enfim, o texto em questão é fundamentalista, autoritário e perigoso, sem contar que ele repete o principal erro dos iluministas, que foi acreditar que a razão era a base de tudo. Mas o pior de tudo não é esta repetição. O pior é que o texto consegue juntar o autoritarismo do iluminismo (a razão é a base de tudo), com o autoritarismo da inquisição (Index librorum proibitorum). Vigilância epistêmica é isto, é index librorum proibitorum.
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Outros textos da prova de redação da Fuvest:

Cultura na rede

Países se unem em projeto da ONU Tesouros informativos de vários países estarão disponíveis gratuitamente para qualquer internauta, a partir deste mês, com a formação da Biblioteca Digital Mundial, uma iniciativa
da ONU. O portal terá, na primeira fase, mapas, fotografias e manuscritos, com textos explicativos em sete línguas, inclusive português. Na segunda fase, será possível consultar livros.

A Biblioteca Nacional brasileira é uma das participantes.
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O acesso à Informação (em sua maioria, eletrônica) se tornou o direito humano mais zelosamente defendido. E aquilo
sobre o que a informação mais informa é a fluidez do mundo habitado e a flexibilidade dos habitantes. O noticiário
– essa parte da informação eletrônica que tem maior chance de ser confundida com a verdadeira representação do
mundo lá fora é dos mais perecíveis bens da eletrônica. Mas a perecibilidade dos noticiários, como informação sobre o
mundo real, é em si mesma uma importante informação: a transmissão das notícias é a celebração constante e
diariamente repetida da enorme velocidade da mudança, do acelerado envelhecimento e da perpetuidade dos
novos começos.

Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida.Adaptado.

O Estado de S. Paulo, 02/10/2007. Adaptado.