Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

04/01/2008

Eichmann, Hitler e São Francisco
Em um dos últimos posts deste blog, eu escrevi o seguinte: "A percepção é uma coisa surpreendente. Você percebe Deus e as coisas divinas, mas também percebe o diabo e os seus ardis... E a consciência escolhe o lado que quer ficar, o lado que quer atuar. É o livre-arbítrio da consciência. Não há diferença entre a consciência de Hitler e a consciência de São Francisco. Há apenas escolha... caminhos completamente diferentes."

Depois que escrevi isto fiquei pensando na questão da diferença, ou seja, na frase: "Não há diferença entre a consciência de Hitler e de São Francisco". Fiquei refletindo para ver se não tinha cometido algum excesso ou erro. E toda a reflexão girava em torno de: a questão da consciência está bem colocada ? Se eu inserir Eichmann no parágrafo anterior, muda alguma coisa ?

Eu disse que entre Hitler e São Francisco não há diferença na consciência, somente escolha. Em outras palavras, as consciência de Hitler e de São Francisco se desenvolveram naturalmente, sem nenhum tipo de interferência significativa externa. Hitler e São Francisco acessaram os conhecimentos que queriam e viveram da forma que queriam, seguindo o caminho que queriam.

Portanto, Hitler e São Francisco eram livres, agiam livremente, pois expressavam livremente suas consciências. Mas e Eichmann ?

Se inserirmos Eichmann na história, a coisa muda. Entre a consciência de Eichmann e São Francisco há diferenças. Entre a consciência de Eichmann e Hitler há diferenças. Após a instalação do nazismo e após a disseminação em massa dos seus ideais, através da mídia e da propaganda, operou-se, na Alemanha, uma verdadeira lavagem cerebral nos seguidores do regime. O sistema totalitário assimilou as consciências individuais, substituindo-as pela consciência do sistema.

A consciência natural desses indivíduos foi arrancada e em seu lugar introduzida a consciência do sistema totalitário. Crenças e idéias que não eram importantes, ou irrelevantes, para esses indivíduos, antes da instalação do nazismo, após o domínio totalitário tornaram-se a razão de ser de suas vidas. Crenças como o anti-semitismo, o extermínio do inimigo, a irrelevância da vida, etc entraram na ordem do dia. A banalização do mal se disseminou pela sociedade.

Esta mudança de consciência ocorreu em Eichmann, mas não ocorreu em Hitler e nos demais operadores do sistema do totalitário. Os operadores do sistema estavam imunes às mentiras, pois eles produziam e disseminavam as mentiras. Eles estavam imunes ao terror, pois eles eram o terror. Eles estavam imunes à propaganda, pois eles criavam as propagandas.

Portanto, Hitler e São Francisco eram livres, seguiam suas próprias consciências, expressavam suas próprias consciências. Mas Eichmann não era livre, pois ele perdeu a sua consciência natural e recebeu a consciência do sistema totalitário. Ele seguia esta consciência, ele expressava esta consciência e a liberdade que ele exercia tinha origem na consciência totalitária. Logo, era a liberdade do sistema, não a sua liberdade natural.

Inclusive, Hannah Arendt, na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, nas páginas 152 e 153, conta que Eichmann, durante o seu interrogatório, narrou que tinha vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant e, particularmente, segundo a definição kantiana do dever. Não acreditando nisso, o Juiz Raveh insistiu na história e Eichmann, para a surpresa de todos, deu uma definição quase correta do imperativo categórico kantiano: “O que eu quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais”. O que não é o caso com roubo e assassinato, por exemplo, porque não é concebível que o ladrão e o assassino desejem viver num sistema legal que dê a outros o direito de roubá-los ou matá-los, assinala Arendt. (p. 153).

Contudo, a maior evidência de que o sistema totalitário assimila a consciência das pessoas, toma conta de suas vontades e ações, utilizando-as como instrumento de seus desígnios aparecem no momento seguinte, quando Eichmann conta que lera a Crítica da razão pura, de Kant. E explica que, a partir do momento em que fora encarregado de efetivar a Solução Final, “deixara de viver segundos os princípios kantianos”, que sabia disso e que se consolava com a idéia de que não era mais “senhor de seus próprios atos”, de que era incapaz de “mudar qualquer coisa”. (p. 153).

Uma evidência de que há diferença entre a consciência de Eichmann e a consciência dos operadores do sistema totalitário aparece na página 155 de Eichmann em Jerusalém. Esta página conta o conflito entre Eichmann e seus superiores, durante o último ano da guerra:

"Cumprir seu "dever" acabou fazendo com entrasse em conflito aberto com as ordens de seus superiores. Durante o último ano da guerra, mais de dois anos depois da Conferência de Wannsee, ele experimentou sua última crise de consciência. Com a aproximação da derrota, ele se viu confrontado com homens de seu próprio escalão que lutavam mais e mais insistentemente por exceções e até pela cessação da Solução Final. Foi o momento em que sua cautela se rompeu e ele começou, mais uma vez, a tomar iniciativas - por exemplo, ele organizou as marchas a pé dos judeus de Budapeste até a fronteira da Áustria, depois que o bombardeio aliado arrasou com o sistema de transporte. Era o outono de 1944, e Eichmann sabia que Himmler havia ordenado o desmantelamento das instalações de extermínio em Auschwitz e que o jogo acabara. "

Marilde Loiola de Menezes (Professora da UNB) escreve no prefácio do livro de Nerione Cardoso, Hannah Arendt e o declínio da esfera pública, página 20, as seguintes considerações:

"Convidada pela revista The New Yorker para fazer a cobertura jornalística do evento, Arendt fez muito mais do que um relato. Refletiu sobre o terror, o extermínio das pessoas e, sobretudo, a razão pela qual o "mal" poderia ser banalizado ao ponto de ser aceito por uma grande maioria da população, incluindo os burocratas convictos de que "estavam cumprindo ordens". Eichmann era um deles. Obedeceu ao nazismo certo de estar cumprindo o dever de servidor do Estado; como bom soldado e cidadão, acatava, simplesmente, as ordens de seus superiores. Era, assim, um tipo comum: obediente, fiel às autoridades e cumpridor dos seus deveres. Graças à sua obstinação e zelo, chegara mesmo a um posto de relevância na burocracia do Estado. No julgamento, era acusado de participação direta na "solução final" que levou milhões de judeus aos campos de extermínio nazista. Não que tivesse nada de pessoal contra eles - "até tinha alguns amigos que eram judeus" -, mas aquela era a política do Estado sendo, portanto, o seu dever obedecê-la. Mesmo quando essa "política" feria o princípio mais elementar da tradição cristã - não matarás -, a obsessão pelo cumprimento do dever parecia que obliterava a sua condição de pensar.

Estarrecida diante dos fatos, mas, ao mesmo tempo, esquivando-se da paixão reinante, Hannah Arendt pôde ver Eichmann em toda a sua mediocridade: um arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de qualquer discriminação moral. Em suma: um homem sem consistência própria no qual os clichês e eufemismos burocráticos estavam profundamente internalizados. Longe da idéia de um monstro, psicopata, perverso, Eichmann era um tipo comum, tão banal quanto o próprio mal que internalizara como parte de seu caráter. Apenas dava a impressão de que a obstinação pelo cumprimento das ordens o impedira de pensar."

Este último parágrafo de Marilde Loiola de Menezes (Professora da UNB) descreve um homem que é um instrumento de um sistema. É uma ferramenta do sistema totalitário. Um homem desprovido da própria consciência, logo incapaz de pensar por si mesmo, mas movido pela vontade do sistema. Movido pela vontade inexóravel de cumprir as ordens do sistema. As ordens do sistema são a vontade do sistema. As ordens do sistema, vontade do sistema, se tornaram a própria vontade de Eichmann.

Uma outra consideração interessante de Marilde Loiola está no parágrafo seguinte que diz:

"A experiência do funcionário nazista se constitui numa das primeiras constatações da autora entre a suspensão do pensar e a banalização do mal. Não que tivesse a ingenuidade de acreditar que somente os que não possuem pensamento crítico possam cometer o mal. Não era essa a questão. O problema só se punha na medida em que esse mal era aceito por todos ou por uma expressiva maioria: a subserviência sem discussão. Esse era o sentido daquilo que a autora designava por banalização do mal. "

Portanto, o sistema totalitário assimila, domina, a consciência dos indivíduos. Inicialmente, a dominação começa com o controle da consciência política, ou seja, da liberdade política, um subsistema da consciência individual, da liberdade individual. A partir desse subsistema, o totalitarismo ataca, contamina e domina as demais consciências, que também são subsistemas, por exemplo, a consciência coletiva. E o controle total ocorre quando a consciência individual é completamente assimilada pelo sistema totalitário.

Neste ponto a capacidade de pensar por si mesmo, ou seja, o uso natural da consciência da pessoa, é paralisada. Os pensamentos (processos mentais) recebem uma nova-matéria para seus processos. A matéria-prima (informação e conhecimento) introjetada pelo totalitarismo. Forma-se assim uma consciência totalitária dentro do indivíduo.

Cansei de falar sobre isto....