Esta questão fica ainda mais interessante quando eu penso nos nazistas que operavam o sistema totalitário. Eles agiam de acordo com a própria consciência ? Agiam. Logo, eles eram livres. Além disso, eles tinham informação e conhecimento. Eram pessoas de extensa cultura, amantes da artes e conhecedores dos clássicos do pensamento. Inclusive, Eichmann lia Kant. Portanto, como se enquadra a ação dos nazistas nesta Teoria da Consciência ?
Vamos pensar, gafanhoto !!! A Teoria da Consciência e Liberdade define a Liberdade como poder de agir de acordo com a própria consciência. Agir de acordo com a própria consciência implica, necessariamente, em respeitar o outro, em respeitar a liberdade do outro, em respeitar a consciência do outro. Caso contrário, a liberdade não é possível. Não é possível porque o agir de acordo com a própria consciência exige que os outros me deixem agir de acordo com a minha consciência. Exige que eu deixe os outros agirem de acordo com as suas consciências.
E o mecanismo encontrado pela consciência individual, para impedir os outros de interferirem na minha liberdade, ou seja, interferirem no meu poder de agir de acordo com a minha consciência, assim como para obrigar-me a respeitar a liberdade dos outros, respeitar a expressão da consciência dos outros, é a consciência coletiva (no âmbito familiar ou de grupos próximos - normas tácitas e costumeiras - moral, etc) e a consciência social (no âmbito da sociedade, do país ou da comunidade internacional - normas tácitas e cogentes - Direito, etc).
Este mecanismo da consciência coletiva e da consciência social, subsistemas da consciência individual, possui um conjunto de normas, regras e valores que emitem sentenças prontas, em determinados casos ou diante de certas ações, para a consciência individual, inibindo comportamentos, ações e vontades que contrariem os interesses da coletividade, ou interesses da sociedade, ou que violem a liberdade do outro. Este mecanismo é de auto-proteção e de proteção do grupo. Violando as regras da família, dissolve-se o grupo familiar. E a dissolução do grupo familiar implica em menos proteção, em menos alimento, em menor possibilidade de sobrevivência.
Biologicamente falando, quem atua contra o grupo tende a se isolar, a viver separado. Vivendo sozinho e separado tende a ser atacado e exterminado mais rapidamente, não passando adiante os genes que o induziu ao isolamento. Já quem vive em grupo tem uma maior chance de sobrevivência e de passar seus genes adiante. Há uma propensão genética nisso. E esta propensão genética, biológica, é potencializada pela propensão cultural. Basta lembrar que foi a sobrevivência em grupo, o trabalho em conjunto e a troca de informações que salvou os cerca de mil humanos (variedade genética existente) que sobreviveram ao cataclisma do vulcão Toba da Ilha de Sumatra, a cerca de setenta e cinco mil anos atrás. Você podem ver isto no documentário da BBC de Londres - "Aventura da Vida" - sobre o desenvolvimento e a evolução da vida na Terra (http://www.guba.com/user/pfilosofia).
Enfim, através deste mecanismo da consciência coletiva e da consciência social a implicação da Liberdade, ou seja, somente terei liberdade se respeitar a liberdade do outro; somente expressarei a minha consciência, se respeitar a expressão da consciência do outro; torna-se fundamento de todo o sistema da Consciência e Liberdade.
Mais do que isto, este mecanismo insere na Teoria a característica da responsabilidade, pois a partir da consciência coletiva e da consciência social, expressar a própria liberdade, agir de acordo com a própria consciência, significa também agir com responsabilidade, respeitando o outro, para que o outro me respeite. E a violação dessa responsabilidade, significa violação da consciência coletiva e social. Logo, é uma violação das regras da Consciência Individual. Portanto,uma forma de inibição da liberdade. Isto significa que violar a liberdade do outro significa violar a minha própria liberdade. Desrespeitar a liberdade do outro é desrespeitar a minha própria liberdade. Atingir a consciência do outro é atingir a minha própria consciência.
Então, alguém dirá: este é o tal do contrato social ? Eu respondo: não. Não existe contrato social. Isto é um paradigma cultural. Qual é a diferença ? Bem, a diferença é que contrato começa com c e paradigma começa com p (brincadeirinha... disse isto só para o meu cérebro chato parar de fazer perguntas.). A diferença é que um contrato é um acordo de vontades, estabelecido com a aceitação da partes e uma paradigma é uma ação padronizada, neste caso é um comportamento cultural, que pode ter começado com apenas duas pessoas e, a partir daí, se espalhou para todas as demais, independentemente de aceitação ou de acordos. Você assinou, quando nasceu, algum contrato social que transferia parte de sua vontade ao governante ? Nem eu... Contudo, aprendemos, desde criancinhas, as regras e o comportamento social. Isto é um paradigma que passa de geração para geração. Certamente, este paradigma cultural começou com o desenvolvimento da consciência coletiva, com o desenvolvimento das regras na família. Em seguida, vieram as regras de convivência em uma tribo. Da consciência coletiva desenvolveu-se a consciência social. A consciência social exigiu o surgimento da consciência política. Esta levará ao desenvolvimento de uma consciência cosmopolita. Há uma evolução cultural da consciência. As regras vão sendo construída e aprimoradas ao longo dos séculos e milênios.
Com isto, podemos retornar ao caso dos nazistas que operavam o sistema totalitário. Agora já temos as respostas para as indagações. Primeiro, há uma íntima relação entre consciência, liberdade e responsabilidade. Esta relação é inserida pelas consciências coletiva e social, que são subsistemas da consciência individual. Logo, agir com consciência significa, necessariamente, agir com responsabilidade. Isto fica evidente quando se pensa que a consciência, para o seu funcionamento, exige informações e conhecimentos. E que o funcionamento da consciência consiste em processos analíticos. Processos analíticos são, pela própria natureza, lógicos, razoáveis e responsáveis.
Mas se os processos analíticos são lógicos, razoáveis e responsáveis, o que aconteceu no nazismo ? O primeiro acontecimento do nazismo foi a deturpação da informação e do conhecimento que atribuiu relevância social máxima a patologias/aberrações sociais. Lembre-se que no âmbito da consciência as informações e os conhecimentos são catalogados, por cada indivíduo, de forma diferente e em graus diferentes. O anti-semitismo tinha uma grande relevância na cabeça de Wagner e de Hitler e ele generalizou isto para a sociedade. O anti-semitismo é uma patologia social e não um elemento da sociedade. Os nazistas transformaram o anti-semitismo em uma política do Estado.
Com estas deturpações, a consciência, como sistema analítico, foi contaminada e passou a operar com dados falsos e a considerar aberrações sociais como comportamento comum e necessário. Com isto, o sistema totalitário começou a entrar na cabeça das pessoas e a dissolver as consciências naturais que possuíam e que não consideravam o anti-semitismo importante. A partir disso, são implantados mecanismos de uniformização das consciências.
Portanto, ocorreu uma violação da liberdade, através da violação da responsabilidade, que é inerente à consciência. Esta violação ocorreu, primeiramente, na generalização/imposição para toda a sociedade das aberrações sociais que existiam na cabeça dos líderes nazistas, idéias anti-semita foram espalhadas e disseminadas na sociedade através da mídia e da propaganda. Idéias que por si sós, já constituíam violação da liberdade do outro. Com isto, os operadores nazistas, violaram os princípios básicos da consciência. E esta violação foi dirigida inicialmente, não contra os judeus, mas contra o próprio povo alemão.
Lembre-se que primeiro o nazismo dominou os alemães, tornando-os instrumentos do totalitarismo. Depois usou estes instrumentos para exterminar os inimigos nas fábricas da morte. Logo, o extermínio dos Judeus é a última e a mais monstruosa das violações que promoveram. Este extermínio começa a se concretizar quando o sistema totalitário já está no domínio completo da maioria das consciência e as pessoas atuam como zumbis, movidas por desejos totalitários, ou seja, os indivíduos já são instrumentos totalitários de dominação e destruição.
Além disso, é válido dizer que a única forma de se retirar completamente a liberdade de um indivíduo é retirando a sua consciência. Não basta apenas criar normas que inibam ou impeçam a consciência de se manifestar, pois a consciência pode, perfeitamente, contrariar a norma ou ignorá-la, ou seja, as normas não retiram a liberdade do indivíduo, pois não podem e não conseguem retirar a consciência. As normas simplesmente reorientam ou condicionam a consciência do indivíduo exteriormente, limitando a liberdade.
Retirar a consciência do indivíduo significa contaminar o funcionamento natural da consciência, modificando a base de análise. É uma espécie de lavagem cerebral que modifica o banco de dados analítico da consciência. O banco de dados formado com informações, conhecimentos, costumes, valores, etc, que o indivíduo captou ao longo da vida naturalmente é substituído por um banco de dados artificial, introjetado pelo sistema, dentro da consciência da pessoa. Assim, a consciência, ao invés de analisar o banco de dados natural, analisa o banco de dados artificial. E é em cima deste último banco de dados que a consciência passa a operar, emitindo sentenças (vontade). Logo, a liberdade oriunda desta vontade viciada e contaminada não é a liberdade do indivíduo, mas sim a liberdade do sistema.
Eichmann tinha vontade, ele seguia a sua vontade, mas ele não era livre, pois a sua consciência estava contaminada pelo nazismo. Os pensamentos que circulavam na consciência de Eichmann e que emitia ordens, formando a sua vontade, eram pensamentos do sistema totalitário. Logo, a liberdade de Eichmann era a liberdade do sistema totalitário. Isto porque a vontade dele era formada por uma consciência movida a informações e conhecimentos introjetados pela mídia e propaganda nazista. A consciência de Eichmann era a consciência do sistema, pois os pensamentos de Eichmann eram sentenças prontas, formulas prontas emitidas pelo nazismo. Eichmann não questiona as sentenças e nem as fórmulas. Não processava informações e nem os conhecimentos. Apenas executava as ordens originadas.
Eichmann chama este comportamento de obediência cadavérica (Kadavergehorsam). Isto é contado por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém:
"Assim sendo, eram muitas as oportunidades de Eichmann se sentir como Pôncios Pilatos, e à medida que passavam os meses e os anos, ele perdeu a necessidade de sentir fosse o que fosse. Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. (...)
Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens - sempre o cuidado de estar "coberto" -, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a "obediência cadavérica" (kadavergehorsam), como ele próprio a chamou. (p. 152)"
E como dissemos anteriormente, aceitar sentenças prontas significa não processar nada, apenas executar aquilo que veio pronto. Este é o truque do sistema: introjetar sentenças prontas nos indivíduos que integram o sistema. Por isso, fala-se em vazio de pensamento. Vazio de pensamento de um ser humano normal. Porém consciência repleta de pensamentos do sistema totalitário: anti-semitismo, extermínio, ordens do Führer, câmara de gás, etc.
E é justamente nesse ponto que entra a razão de ser dessa teoria, ou seja, a novidade totalitária. O totalitarismo faz uma coisa que nenhum outro sistema tinha conseguido fazer antes. E que coisa é essa ? O totalitarismo retirou a consciência dos indivíduos. Logo, retirou completamente a liberdade dos Seres Humanos que pertenciam àquele sistema. Todos os movimentos anteriores atingiam a indivíduo criando regras e normas que condicionavam as consciências e limitavam a liberdade, mas nenhum sistema jamais havia retirado a consciência das pessoas. Retirando a consciência, ele retirou completamente a liberdade dos indivíduos.
Mas o totalitarismo foi além, muito além disso, ele não só retirou a consciência, mas a substituiu por outra consciência: a consciência do sistema totalitário. As pessoas perderam a sua consciência individual, logo, perderam a sua liberdade individual; e receberam, em troca, a consciência do sistema, logo, passaram a ter a liberdade do sistema (poder de agir de acordo com a consciência do sistema). A consciência do sistema gera a liberdade do sistema.
Mas o que exatamente quer dizer perda de consciência, seguida de substituição de consciência ? Em termos excessivamente genéricos é uma espécie de lavagem cerebral em massa. Retira a consciência do indivíduo, fazendo-o perder a sua identidade e individualidade, imergindo-o em uma multidão de iguais.
Por isso, em um sistema totalitário a mídia, a propaganda e o terror são tão importantes. Por isso, o vazio de pensamento, a mediocridade e a indiferença são essenciais para o sucesso inicial do sistema. São características que facilitam e garantem o sucesso de substituição de consciência dos indivíduos. Pessoas com tais características tem suas consciências facilmente arrancada e substituída por outra. São pessoas dóceis, facilmente controladas e dominadas. Pessoas que não percebem que seus pensamentos são pensamentos do sistema, que suas idéias e ideais são idéias e ideais do sistema, que suas ações são ações do sistema. A consciência que possuem é a consciência do sistema. Pensam igual o sistema. Falam igual o sistema. Agem igual o sistema. Fazem o que o sistema faz.
É um sistema que não admite questionamentos. Quaisquer questionamentos põe o sistema em risco, podendo romper a estrutura e mostrar as reais intenções e os objetivos da coisa. O todo é visto apenas por quem estrutura e controla o sistema.
Um outro ponto interessante desta Teoria é que o totalitarismo entra pela consciência política. Ele domina e modifica as regras da consciência política. Em seguida ele vai para a consciência social. Ele modifica e domina as regras do direito. E o próximo passo é entrar na consciência coletiva, na moral, na ética, nas relações de amizade e na família. E por último, quando já tem o domínio desses subsistemas da consciência, ele ataca e contamina a consciência individual.