'Todo mundo grita, ninguém tem razão'

Entrevista - Roberto Romano: professor titular de Filosofia da Unicamp

O Estado de São Paulo - Simone Iwasso
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Um grande palco, com diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas com os holofotes apontando excessivamente para um pequeno trecho de cada vez. Sem enxergar o contexto, o restante que pode explicar e ser contrapeso ao que está sendo ressaltado fica de fora. Assim, todos estão dizendo a verdade e todos estão mentindo, já que cada recorte só fica verdadeiro se visto em ligação com o todo. A alegoria, retirada de um livro do alemão Erich Auerbach, é usada pelo filósofo Roberto Romano, professor titular de Filosofia da Unicamp, para analisar o impasse que se instaurou na USP desde o início do ano com o debate sobre a autonomia, motivado por decretos do governador José Serra (PSDB). Para entender a situação, o professor retoma a Constituição de 88, que garantiu a autonomia universitária, e a falta de regulamentação que se seguiu após sua promulgação - responsabilidade, segundo ele, dos sucessivos governos, ministros, parlamentares, reitores, professores e movimentos estudantis.

O senhor considera que a autonomia universitária está em risco?

É evidente que há risco.Os decretos em cascata do governo definem padrões de administração. Dissolver a estrutura do Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) e colocar o secretário de Ensino Superior como presidente quando havia um mandato em vigência foi uma espécie de demissão sem cerimônia da reitora. Depois veio uma série de decretos que seriam aparentemente uma prestação de contas, mas que também são mudanças estruturais de alocação de recursos. Universidade tem departamentos, setores, conselhos. As pesquisas são feitas não de maneira sincrônica, mas cada uma com um tempo e necessidade; uma demanda mais material, outra menos. Uma coisa é prestar contas, outra é passar sob a égide do governador.

O governo devolveu a presidência do Cruesp aos reitores e afirmou que os decretos são para todos os setores do funcionalismo, mas não atingem as universidades.

Tudo isso vêm na forma de procedimento habitual do Executivo nacional - federal, estadual ou municipal. Primeiro ele faz o que deseja e depois pede desculpas. Não consulta, não fala, não discute. Reitores foram tomados de surpresa, apenas comunicados. Pinotti foi reitor da Unicamp, Serra foi professor. Mas, quando agem como o Executivo, deixam a prudência de lado e mesmo idéias boas são totalmente mal recebidas porque jogadas de surpresa. Nesse caso, existe um propósito teoricamente bom que é a prestação de contas, mas não houve negociação.

É possível dizer que alguém está com mais razão nesse debate?

Vou usar uma imagem do Erich Auerbach, no livro Mimeses, quando ele fala da técnica das luzes, do efeito holofote.Você tem um grande palco, onde diversas coisas acontecem sincronicamente. Na hora da luta, você ilumina somente um ponto do palco. Aquilo que você ilumina é verdadeiro, mas, ao focar a luz em só um ponto, fica falso. O que estamos vendo é que estudantes colocam o holofote num pedaço do palco e o governo coloca em outro. Os dois estão dizendo a verdade e os dois estão mentindo. É preciso tempo e paciência para iluminar todo o palco.

Qual é então a situação da autonomia?

A autonomia universitária não foi regulamentada no plano federal até hoje. É um mandamento sem nenhum corpo, uma idéia sem ossatura. Ela foi colocada na Constituição pelo Florestan Fernandes, que estava preocupado com as instituições de pesquisa. E segue o princípio da Constituição, que é a autonomia dos Estados, dos municípios, dos poderes. Veja o Ministério Público, quanta coisa se fez a partir da autonomia. Ela andou lentamente, mas andou - tanto que os últimos retoques nesse ponto foram dados no ano passado. No caso das universidades, nada foi feito. É necessária uma regulamentação que estabeleça normas, e a falta disso é culpa dos sucessivos governos federais, dos ministros da Educação, dos parlamentares e dos reitores das universidades federais, porque não interessou, nesses anos todos, discutir seriamente a autonomia. Eles preferiram manter a garantia de liberar recursos batendo na porta, usando influência junto a ministros.

O Estado de São Paulo, em 1989, fez um decreto sobre a autonomia. Não foi um começo?

Qualquer decreto para as estaduais se empalidece se não é baseado na autonomia das federais. Ninguém levou a sério a regulamentação e a implementação da autonomia universitária. Ficou um princípio morto, que não traz nenhum benefício para ninguém. O decreto de São Paulo, de 1989, do então governador Orestes Quércia, não traz garantias, até porque pode ser revogado a qualquer momento. Na época do Fleury, o governo repassava menos verba para as estaduais e os reitores não reclamavam porque sabiam que dependiam de um decreto que podia ser revogado. Na Constituição do Estado, a Fapesp tem garantida sua autonomia de recursos, um processo encaminhado pelo Montoro. Para as universidades, não há isso. E aí entra a culpa dos sucessivos governos, reitores, professores e movimento estudantil. Não é possível dizer que os docentes são inocentes, que essa questão caiu do céu agora. Basta um pouco de boa-fé e conhecimento jurídico para saber.

Ações judiciais questionando os decretos seriam alternativa?

Não adianta discutir o princípio da autonomia porque ele já está na Constituição. Mas também ninguém pode cobrar do Estado o respeito absoluto a isso, porque não há nada resolvido. Na hora da briga, sempre aparece alguém querendo ter toda a razão. É a imagem dos holofotes. Não há nenhum entendimento no lado docente, nem no dos estudantes, nem nas cúpulas das universidades. Também não há entendimento na Assembléia e no governo. Quanto a essa questão, a única esperança seria a Constituição federal, mas ainda não há essa regulamentação. Se você entra na Justiça, como vai agir uma casa como o Supremo Tribunal Federal (STF)? Ele terá de dizer que os decretos operam nessa franja, nesse vácuo. Repito, a falta de responsabilidade sobre a situação é de todo mundo. Outro exemplo: até hoje as estaduais não encaminharam uma solução para a aposentadoria dos professores, não se criou um fundo de pensão. Isso é uma maneira de ficar na mão do governo.

A academia estaria disposta a retomar essa discussão?

As pessoas falam do governo, dos estudantes, dos professores como se fosse um monobloco. E isso não é verdadeiro. Você tem o secretário com sua opinião, o governador que ainda não manifestou claramente o que pensa sobre a essência da questão e a base parlamentar. Do lado docente e estudantil, também não é monobloco. Temos desde esses grupos que agem como fascistas para impor sua opinião até pessoas sérias, que não concordam com essa invasão da reitoria, não concordam com essa maneira de protestar, mas que estão realmente preocupadas com a autonomia. É preciso colocar os holofotes em todos os cantos do palco.

Esse momento muito heterogêneo de discussão seria uma oportunidade para propor uma debate sobre a regulamentação?

Está na hora de o governo reunir representantes dos três poderes e chamar universidades, especialistas em ciência e tecnologia para elaborar um plano com base em estudos jurídicos. Se vão abrir um clube, fazem estudos jurídicos, discutem com a sociedade. Agora, para uma coisa tão séria quanto a autonomia das universidades, ou se discute em praça pública ou fechado em gabinetes.

Existe também o fato de outras reivindicações entrarem no protesto de alunos, professores e funcionários.

Um elemento que me deixa muito irritado é o oportunismo de alguns setores. Autonomia é uma coisa gravíssima, política, social, científica e tecnológica. Não dá para misturar com 3% de aumento. É oportunismo atroz. Parece que está se comparando autonomia com aporte de R$ 200 nos salários. Se a gente diz que o governo está errado, você é elogiado. Se fala que os reitores estão errados, aí é vaiado.

A impressão que passa é a de que a universidade é muito competente e eficiente na hora de estudar as situações da sociedade, mas, quando se trata de temas internos, há uma grande dificuldade.

Eu disse uma coisa semelhante em uma reunião do conselho de graduação da Unicamp. Está na hora de a universidade começar a tratar seus assuntos internos com o mesmo rigor e exigência que dispensa para a física, a lógica, a química, a matemática, as ciências de maneira geral. Ela trata de suas questões, até hoje, empiricamente. Todo mundo grita, ninguém tem razão.

Quem é Roberto Romano

Paranaense, 61 anos, leciona História da Filosofia Moderna na graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e Ética e Filosofia na pós do mesmo instituto

Autor de Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp) e Caldeirão de Medéia (Ed. Perspectiva)

Foi vice-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp