A questão das relações entre ciência e religião desperta interesse crescente neste início de século, como se nossa sociedade percebesse mais ou menos do modo confuso a pressão da mutação.
O contexto comum em que se defronta a ciência e a religião só pode ser, de nosso ponto de vista, o da mutação. É a perspectiva em que ambas surgem como mensageiras do extra-humano. A religião dá-lhe o nome de "Deus", enquanto a ciência entrega-se às profundezas do Universo e das leis.
Foi no exame da questão do sentido que as vimos se aproximarem, se oporem, dialogarem, convergindo afinal na presença do sagrado sentido pelo homem consciente de sua humanidade num mundo que o envolve e o supera até o infinito.
Hoje, sabemos que a ciência tende para o verdadeiro, mas que o sentido lhe escapa; simetricamente, a profundidade da religião está no sentido que traz em seu bojo, enquanto sua roupagem conceitual está em frangalhos.
De certa maneira, quase tudo que é metafísica religiosa volta a ser terreno virgem, à parte o essencial, o fogo nas cinzas, o diamante na ganga tão bem identificado por Einstein nos grandes criadores religiosos.
As religiões que preservarem seu sentido original, o de mensageiras do divino, não poderão deixar de depurar suas doutrinas para delas extrair o essencial. Isto não deixará de suscitar reações, os fundamentalismos haverão de opor-se por todos os meios. A proliferação de seitas não é menos manifesta.
Quando a sabedoria induz as grandes religiões a reduzir em seu repertório o peso de crenças Neolíticas, multiplicam-se as empreitadas substitutivas, tanto mais que as imitações são de
fácil execução.
absurdo, tão evidente parece que nenhuma delas detém uma verdade absoluta. O mais das vezes, elas só opõem umas às outras aquilo que têm de inaceitável, e esses conflitos obscuros mostram o grau de dificuldade dos seres humanos para distinguir o que é da ordem do pensamento daquilo que é da ordem do sentimento.
Distinguir, ir ao essencial: não é precisamente este o papel da filosofia ? Ela pôde algumas vezes mostrar que era capaz de destilar o melhor da religião, como no caso dos platônicos, ou, mais tarde, Tomás de Aquino, Maimônides e Averróis: o cristão, o judeu e o muçulmano.
A filosofia européia, de Descartes a Kant, já empreendera a necessária depuração dos valores cristãos em que nasceu, e continua sendo a única a levar adiante o que ainda está vivo do espírito grego.
Ela nunca terá sido mais necessária que agora, quando deveria surgir de nosso conhecimento uma arte mais pura de viver e amar. Devemos portanto enxergar mais longe que André Malraux em sua famosa profecia: "O século XXI será religioso", pois isto pode significar o melhor como também o pior. O melhor, sem dúvida alguma, ou a grande esperança, seria que este século realmente voltasse a ser filosófico, mas em seu sentido original: "amigo da sabedoria".