Democratizar o conhecimento e socializar os saberes como ferramenta para transformação social e econômica. Democratizar e socializar para reduzir as desigualdades regionais. Democratizar e socializar para dar oportunidades. Democratizar e socializar para dar esperanças e certezas de um futuro melhor. O poder transformador do conhecimento, monopolizado e retido nas melhores Universidades Públicas, tem que ser disseminado, gratuitamente, para toda a sociedade.

26/12/2008

Conexões Ocultas
Fritjof Capra

2- Mente e consciência

Uma das mais importantes conseqüências filosóficas dessa nova compreensão da vida é uma concepção inaudita da natureza da mente e da consciência, que finalmente supera o dualismo cartesiano entre mente e matéria. No século XVII, René Descartes baseou a sua concepção da natureza numa divisão fundamental entre dois domínios independentes e separados - o da mente, a "coisa pensante" (rés cogitans), e o da matéria, a "coisa extensa" (rés
extensa). Essa cisão conceitual entre mente e matéria tem assombrado a ciência e a filosofia ocidentais há mais de trezentos anos.

Depois de Descartes, os cientistas e os filósofos continuaram a conceber a mente como uma espécie de entidade intangível e foram capazes de imaginar como essa "coisa pensante" poderia relacionar-se com o corpo. Embora os neurocientistas saibam desde o século XIX que as estruturas cerebrais e as funções mentais estão intimamente ligadas, a exata relação entre a mente e o cérebro permanece misteriosa. Ainda em 1994, data recente, os organizadores de uma antologia chamada Consciousness in Philosophy and Cognitive Neuroscience [A Consciência na
Filosofia e nas Neurociências da Cognição] tiveram de declarar francamente em sua introdução: "Muito embora todos concordem em que a mente tem algo que ver com o cérebro, ainda não há
consenso generalizado quanto à natureza exata dessa relação.'"

O avanço decisivo da concepção sistêmica da vida foi o de ter abandonado a visão cartesiana da mente como uma coisa, e de ter percebido que a mente e a consciência não são coisas, mas processos. Na biologia, esse novo conceito da mente foi desenvolvido durante a década de 1960 por Gregory Bateson, que usou o termo "processo mental", e, independentemente, por Humberto Maturana, que centrou sua atenção na cognição, o processo de conhecimento.(2) Na década de 1970, Maturana e Francisco Varela ampliaram a obra inicial de Maturana e transformaram-na numa teoria plenamente formada, que se tornou conhecida como a teoria da cognição de Santiago.(3) No decorrer dos últimos vinte e cinco anos, o estudo da mente a partir dessa perspectiva sistêmica floresceu e tornou-se um grande campo interdisciplinar de estudos, chamado de ciência da cognição, que transcende as estruturas tradicionais da biologia, da psicologia e da epistemologia.

A teoria da cognição de Santiago

A idéia central da teoria de Santiago é a identificação da cognição, o processo de conhecimento, com o processo do viver. Segundo Maturana e Varela, a cognição é a atividade que garante a autogeração e a autoperpetuação das redes vivas. Em outras palavras, é o próprio processo da vida. A atividade organizadora dos sistemas vivos, em todos os níveis de vida, é uma atividade mental. As interações de um organismo vivo vegetal, animal ou humano - com seu ambiente são interações cognitivas. Assim, a vida e a cognição tornam-se inseparavelmente ligadas. A mente - ou melhor, a atividade mental - é algo imanente à matéria, em todos os níveis de vida. Essa é uma expansão radical do conceito de cognição e, implicitamente, do conceito de mente. De acordo com essa nova concepção, a cognição envolve todo o processo da vida - inclusive a percepção, as emoções e o comportamento - e nem sequer depende necessariamente da existência de um cérebro e de um sistema nervoso.

Na teoria de Santiago, a cognição está intimamente ligada à autopoiese, a autogeração das redes vivas. O sistema autopoiético é definido pelo fato de sofrer mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo que conserva o seu padrão de organização em teia. Os componentes da rede continuamente produzem e transformam uns aos outros, e o fazem de duas maneiras distintas. A primeira espécie de mudança estrutural é a de auto-renovação. Todo organismo vivo
se renova constantemente, na medida em que suas células se dividem e constroem estruturas, na medida em que seus tecidos e órgãos substituem suas células num ciclo contínuo. Apesar dessa
mudança permanente, o organismo conserva a sua identidade global, seu padrão de organização.

O segundo tipo de mudança estrutural num sistema vivo é aquele que cria novas estruturas - novas conexões da rede autopoiética. Essas mudanças, que não são cíclicas, mas seguem uma linha de desenvolvimento, também ocorrem continuamente, quer em decorrência das influências ambientais, quer como resultado da dinâmica interna do sistema.


Segundo a teoria da autopoiese, o sistema vivo se liga estruturalmente ao seu ambiente, ou seja, liga-se ao ambiente através de interações recorrentes, cada uma das quais desencadeia
mudanças estruturais no sistema. A membrana celular, por exemplo, assimila continuamente certas substâncias do ambiente para incorporá-las ao processo metabólico da célula. O sistema
nervoso de um organismo muda o seu padrão de ligações nervosas a cada novo estímulo sensorial. Porém, os sistemas vivos são autônomos. O ambiente só faz desencadear as mudanças estruturais; não as especifica nem as dirige. Essa acoplagem estrutural, tal como a definem Maturana e Varela, estabelece uma nítida diferença entre os modos pelos quais os sistemas vivos e os não-vivos interagem com o ambiente.

Quando você dá um pontapé numa pedra, por exemplo, ela reage ao pontapé de acordo com uma cadeia linear de causa e efeito.

Seu comportamento pode ser calculado por uma simples aplicação das leis básicas da mecânica newtoniana. Quando você dá um pontapé num cachorro, a situação é totalmente diferente. Ele
reage ao pontapé com mudanças estruturais que dependem da sua própria natureza e do seu padrão (não-linear) de organização. Em geral, o comportamento resultante é imprevisível.

À medida que o organismo vivo responde às influências ambientais com mudanças estruturais, essas mudanças, por sua vez, alteram o seu comportamento futuro. Em outras palavras, o sistema que se liga ao ambiente através de um vínculo estrutural é um sistema que aprende. A ocorrência de mudanças estruturais contínuas provocadas pelo contato com o ambiente - seguidas de uma adaptação, um aprendizado e um desenvolvimento também
contínuos - é uma das características fundamentais de todos os seres vivos.

Em virtude da acoplagem estrutural, podemos qualificar de inteligente o comportamento de um animal, mas jamais aplicaríamos esse termo ao comportamento de uma rocha.

À medida que continua interagindo com o ambiente, o organismo vivo sofre uma seqüência de mudanças estruturais e, com o tempo, acaba por formar o seu próprio caminho individual de
acoplagem estrutural. Em qualquer ponto desse caminho, a estrutura do organismo sempre pode ser definida como um registro das mudanças estruturais anteriores e, portanto, das interações
anteriores.

Em outras palavras, todos os seres vivos têm uma história. A estrutura viva é sempre um registro dos desenvolvimentos já ocorridos. Ora, como a estrutura de um organismo constitui um registro das mudanças estruturais anteriores, e como cada mudança estrutural influencia o comportamento futuro do organismo, segue-se daí que o comportamento do organismo vivo é definido por sua estrutura. Segundo a terminologia de Maturana, o comportamento dos sistemas vivos é "determinado pela estrutura".

Essa noção de determinismo estrutural lança nova luz sobre o antiqüíssimo debate filosófico acerca da liberdade e do determinismo. Segundo Maturana, o comportamento do organismo vivo é, de fato, determinado. Porém, não é determinado por forças exteriores, mas pela estrutura do próprio organismo - uma estrutura formada por uma sucessão de mudanças estruturais autônomas. Assim, o comportamento do organismo vivo é ao mesmo tempo determinado e livre. Os sistemas vivos, portanto, respondem autonomamente às perturbações do ambiente. Respondem a elas com mudanças na sua própria estrutura, ou seja, com um rearranjo
do padrão de ligações da sua rede estrutural. Segundo Maturana e Varela, nenhum sistema vivo pode ser controlado; só pode ser perturbado. Mais ainda: o sistema vivo não especifica somente
as suas mudanças estruturais; especifica também quais são as perturbações do ambiente que podem desencadeá-las.

Em outras palavras, o sistema vivo conserva a liberdade de decidir o que perceber e o que aceitar como perturbação. É essa a chave da teoria da cognição de Santiago. As mudanças estruturais do sistema constituem atos de cognição. Na medida em que especifica quais as perturbações do ambiente que podem desencadear mudanças, o sistema especifica a extensão do seu domínio cognitivo; ele "produz um mundo", nas palavras de Maturana e Varela.

A cognição, portanto, não é a representação de um mundo que existe independentemente e por si, mas antes a contínua produção de um mundo através do processo do viver. As interações do sistema vivo com seu ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo do viver é um processo de cognição. Nas palavras de Maturana e Varela, "viver é conhecer". À medida que o organismo vivo segue o seu próprio caminho de modificação estrutural, cada uma das mudanças que compõem esse caminho corresponde a um ato cognitivo, o que significa que o aprendizado e desenvolvimento não passam de dois lados da mesma moeda.

A identificação da mente, ou cognição, com o processo da vida é uma idéia nova na ciência, mas é uma das intuições mais profundas e arcaicas da humanidade. Nos tempos antigos, a mente racional humana era vista como apenas um dos aspectos da alma imaterial, ou espírito. A distinção básica que se fazia não era entre corpo e mente, mas entre corpo e alma, ou corpo e espírito. Nas línguas antigas, tanto a alma quanto o espírito eram descritos pela metáfora do sopro vital. As palavras para "alma" em sânscrito (atman), em grego (psyche) e em latim (anima) significam, todas elas, "sopro". O mesmo vale para as palavras que significam "espírito" em latim (spiritus), em grego (pneuma) e em hebraico (ruálí). Também elas significam "sopro". A antiga idéia comum a todas essas palavras é a de que a alma ou o espírito são o sopro da vida. Do mesmo modo, o conceito de cognição na teoria de Santiago vai muito além da mente racional, na medida em que inclui todo o processo do viver. A comparação entre a cognição e o sopro vital parece ser uma metáfora perfeita.

Para melhor compreender e avaliar o avanço conceitual que a teoria de Santiago representa, vamos voltar à espinhosa questão da relação entre mente e cérebro. Na teoria de Santiago, essa relação é simples e clara. A caracterização cartesiana da mente como "coisa pensante" é abandonada. A mente não é uma coisa, mas um processo - o processo de cognição, identificado com o processo do viver. O cérebro é uma estrutura específica através da qual se dá esse processo. A relação entre mente e cérebro, portanto, é uma relação entre processo e estrutura. Além disso, o cérebro não é a única estrutura através da qual opera o processo de
cognição. Toda a estrutura do organismo participa do processo cognitivo, quer o organismo tenha um cérebro e um sistema nervoso superior, quer não.

Na minha opinião, a teoria da cognição de Santiago é a primeira teoria científica a superar a cisão cartesiana entre mente e matéria, e por isso terá conseqüências das mais momentosas. A
mente e a matéria já não parecem pertencer a duas categorias diferentes, mas podem ser concebidas como dois aspectos complementares do fenômeno da vida - processo e estrutura. Em
todos os níveis da vida, a começar com o da célula mais simples, a mente e a matéria, o processo e a estrutura, acham-se inseparavelmente unidos.

Cognição e consciência

A cognição, tal como a compreende a teoria de Santiago, é associada à vida em todos os seus níveis e constitui, portanto, um fenômeno muito mais amplo do que a consciência. A consciência - ou seja, a experiência vivida e consciente - se manifesta em certos graus de complexidade cognitiva que exigem a existência de um cérebro e de um sistema nervoso superior.

Em outras palavras, a consciência é um tipo especial de processo cognitivo que surge quando a cognição alcança um certo nível de complexidade.

É interessante notar que a noção de consciência como processo apareceu na ciência já no século XIX, nos escritos de William James, que muitos consideram o maior psicólogo norte-americano. James era um crítico ardoroso das teorias reducionistas e materialistas que dominavam a psicologia em sua época, e um defensor veemente da interdependência da mente e do corpo. Afirmou que a consciência não é uma coisa, mas um fluxo em contínua mudança, e ressaltou a natureza pessoal, contínua e altamente integrada dessa corrente da consciência.(4)

Nos anos subseqüentes, porém, as extraordinárias opiniões de William James não foram capazes de diminuir o fascínio que o cartesianismo exercia sobre os psicólogos e os cientistas naturais, e sua influência só voltou a se fazer sentir nas últimas décadas do século XX. Mesmo durante as décadas de 1970 e 1980, em que novas hipóteses humanistas e transpessoais estavam sendo formuladas pelos psicólogos norte-americanos, o estudo da consciência como uma experiência viva ainda era tabu no campo das ciências da cognição.

No decorrer da década de 1990, a situação mudou por completo. A ciência da cognição firmou-se como um grande campo de estudos interdisciplinares; ao mesmo tempo, novas técnicas não-invasivas de estudo das funções cerebrais foram desenvolvidas, possibilitando a observação dos processos neurais complexos associados à imaginação e a outras experiências próprias do
ser humano.(5) E, de repente, o estudo científico da consciência tornou-se um campo de pesquisas respeitado e concorrido. Num período de poucos anos, publicaram-se vários livros sobre a natureza da consciência, de autoria de ganhadores do Prêmio Nobel e outros eminentes cientistas; dezenas de artigos escritos pelos maiores cientistas e filósofos da cognição foram
publicados no recém-criado Journal of Consciousness Studies; e grandes conferências científicas passaram a receber o nome de "Rumo a uma Ciência da Consciência".(6)

Embora os cientistas e filósofos da cognição tenham proposto muitas maneiras diferentes de proceder ao estudo da consciência, e tenham às vezes se engajado em acalorados debates, parece que se está chegando a um consenso cada vez maior quanto a dois pontos de grande importância. O primeiro, como já dissemos, é o reconhecimento do fato de que a consciência é um processo cognitivo que surge de uma atividade neural complexa. O segundo é a distinção entre dois tipos de consciência - em outras palavras, dois tipos de experiências cognitivas - que surgem em níveis diferentes de complexidade neurológica.

O primeiro tipo, chamado de "consciência primária", surge quando os processos cognitivos passam a ser acompanhados por uma experiência básica de percepção, sensação e emoção.

Essa consciência primária manifesta-se provavelmente na maioria dos mamíferos e talvez em alguns pássaros e outros vertebrados.(7) O segundo tipo de consciência, chamado às vezes de "consciência de ordem superior",(8) envolve a autoconsciência - uma noção de si mesmo, formulada por um sujeito que pensa e reflete. A experiência da autoconsciência surgiu durante a evolução dos grandes macacos, ou "hominídeos", junto com a linguagem, o pensamento conceitual e todas as outras características que se manifestam plenamente na consciência
humana. Em virtude do papel essencial da reflexão nessa experiência consciente de ordem superior, vou chamá-la de "consciência reflexiva".

A consciência reflexiva envolve um alto grau de abstração cognitiva. Ela inclui, entre outras coisas, a capacidade de formar e reter imagens mentais, que nos permite elaborar valores, crenças, objetivos e estratégias. Esse estágio evolutivo tem relação direta com o tema principal deste livro - a aplicação da nova compreensão da vida ao domínio social - porque, com a evolução da linguagem, surgiu não só o mundo interior dos conceitos e das idéias como também o mundo social da cultura e dos relacionamentos organizados.

A natureza da experiência consciente

O problema central da ciência da consciência é o de explicar a experiência subjetiva associada aos acontecimentos cognitivos. Os diversos estados de experiência consciente são às vezes chamados de qualia pelos cientistas da cognição, pois cada estado é caracterizado por uma "sensação qualitativa" especial.(9) O desafio de explicar esses qualia foi caracterizado como "o osso duro de roer" da ciência da consciência, num artigo do filósofo David Chalmers, citado com bastante freqüência. (10) Depois de recapitular ciência cognitiva convencional, Chalmers afirma que não é possível explicar por que certos processos nervosos dão origem à experiência consciente. "Para explicar a experiência consciente", conclui ele, "precisamos de um elemento extra na explicação."

Essa afirmação nos faz lembrar do debate entre os mecanicistas e os vitalistas acerca da natureza dos fenômenos biológicos nas primeiras décadas do século XX. Enquanto os mecanicistas afirmavam que todos os fenômenos biológicos poderiam ser explicados pelas leis da física e da química, os vitalistas asseveravam que uma "força vital" deveria ser acrescentada a essas leis, constituindo-se assim num elemento adicional, extrafísico, da explicação dos fenômenos biológicos. A idéia que surgiu desse debate, e que só foi formulada muitas décadas depois, foi a de que, para explicar os fenômenos biológicos, também temos de levar em conta a dinâmica não-linear complexa das redes vivas.

Só chegaremos a uma compreensão plena dos fenômenos biológicos quando os abordarmos mediante a interação de três níveis descritivos diferentes: a biologia dos fenômenos observados, as leis da física e da bioquímica e a dinâmica não-linear dos sistemas complexos.

Parece-me que os estudiosos da cognição, quando abordam o estudo da consciência, encontram-se em situação muito semelhante, posto que num outro nível de complexidade.

A experiência consciente é um fenômeno que surge espontaneamente (emergent phenomenon), ou seja, não pode ser explicada somente em função dos mecanismos neuronais. A experiência nasce da dinâmica não-linear complexa das redes neurais, e só poderá ser explicada
se a nossa compreensão da neurobiologia for combinada a uma compreensão dessa dinâmica. Para chegar a uma compreensão plena da consciência, temos de estudá-la mediante uma análise cuidadosa das experiências conscientes; da física, da bioquímica e da biologia do sistema nervoso; e da dinâmica não-linear das redes neurais. A ciência verdadeira da consciência só será formulada quando compreendermos de que maneira esses três níveis descritivos podem entretecer-se naquilo que Varela denominou "trança de três" do estudo da consciência.(12)

Quando o estudo da consciência se processa pela combinação da experiência, da neurobiologia e da dinâmica não-linear, o "osso duro" se transforma no desafio da compreensão e da aceitação de dois novos paradigmas científicos. O primeiro é o paradigma da teoria da complexidade. Uma vez que os cientistas, em sua maioria, estão acostumados a trabalhar com modelos lineares, muitas vezes relutam em adotar a estrutura não-linear da teoria da complexidade e têm dificuldade para compreender todas as implicações da dinâmica não-linear. Isso se aplica, em específico, ao fenômeno do surgimento espontâneo (emergence).

O modo pelo qual a experiência consciente pode surgir dos processos neurofisiológicos parece altamente misterioso. Porém, esse surgimento é típico dos fenômenos emergentes. O surgimento espontâneo resulta na criação de novidades, e essas novidades muitas vezes são qualitativamente diferentes dos fenômenos a partir dos quais surgem. Pode-se ilustrar esse fato com um exemplo bastante conhecido tirado da química: o exemplo da estrutura e das propriedades do açúcar. Quando átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio se ligam de uma determinada maneira para formar o açúcar, o composto resultante tem um sabor doce. A doçura não está nem no C, nem no O, nem no H; reside, isto sim, no padrão que surge de uma determinada interação dos três. Em outras palavras, é uma "propriedade emergente", ou que surge espontaneamente.

Além disso, a rigor, essa doçura não é uma propriedade das ligações químicas. É uma experiência sensorial que surge quando as moléculas de açúcar interagem com a química das nossas papilas gustativas, interação essa que, por sua vez, faz com que um conjunto de neurônios sejam estimulados de uma maneira específica.

A experiência da doçura nasce dessa atividade neural. Assim, a simples afirmação de que a propriedade característica do açúcar é a doçura refere-se, na verdade, a toda uma série de fenômenos emergentes que ocorrem em diversos níveis de complexidade. Os químicos não vêem nenhum problema conceitual nesses fenômenos emergentes quando identificam uma determinada classe de compostos como açúcares em virtude do seu sabor doce. Da mesma maneira, os estudiosos da cognição do futuro não terão problemas conceituais com outras espécies de fenômenos emergentes, quando os analisarem em função da experiência consciente resultante, da bioquímica e da neurobiologia.

Para fazer isso, porém, os cientistas terão de aceitar outro paradigma novo - terão de reconhecer que a análise da experiência viva, ou seja, dos fenômenos subjetivos, tem de fazer parte de qualquer ciência da consciência que mereça ser considerada como tal.(13) Mas esse reconhecimento exige uma mudança metodológica profunda que poucos estudiosos da cognição estão dispostos a empreender, e que constitui, assim, a própria raiz do "osso duro de roer" da ciência da consciência.

A enorme relutância dos cientistas em se ver às voltas com os fenômenos subjetivos faz parte da nossa herança cartesiana. A divisão fundamental que Descartes operou entre a mente e a matéria, o eu e o mundo, levou-nos a crer que o mundo pudesse ser descrito objetivamente, ou seja, sem que se fizesse menção nenhuma ao observador humano. Tal descrição objetiva da natureza tornou-se o ideal de toda ciência. Entretanto, três séculos depois de Descartes, a teoria quântica nos mostrou que esse ideal clássico de uma ciência objetiva não poderia se aplicar ao estudo dos fenômenos atômicos.

E, em época ainda mais recente, a teoria da cognição de Santiago deixou claro que a própria cognição não é a representação de um mundo que existe independentemente, mas antes a "produção" de um mundo mediante o processo do viver. Chegamos a perceber que a dimensão subjetiva está sempre implícita na prática da ciência. Porém, de maneira geral, ela não é o objeto explícito de estudo. Já numa ciência da consciência, alguns dos próprios dados a ser examinados são experiências subjetivas e interiores.

Para que esses dados sejam reunidos e analisados sistematicamente, é preciso proceder-se a um exame disciplinado da experiência subjetiva, da experiência de "primeira pessoa". É só quando tal exame se tornar uma parte inalienável do estudo da consciência que este poderá se chamar, de pleno direito, uma "ciência da consciência".

Isso não significa que temos de renunciar ao rigor científico. Quando falamos que a ciência tem de ter "descrições objetivas", referimo-nos antes de mais nada a um corpus de conhecimento moldado, restringido e regulado pela atividade científica coletiva - a algo que não se resume a uma coletânea de relatos individuais. Mesmo quando o objeto de investigação é o relato em
primeira pessoa das experiências conscientes, a validação intersubjetiva que é uma das práticas padronizadas da ciência não precisa ser deixada de lado.(14)

As escolas de estudo da consciência

O uso da teoria da complexidade e a análise sistemática dos relatos das experiências conscientes em primeira pessoa serão essenciais para a formulação de uma ciência da consciência digna desse nome. Nestes últimos anos, já demos vários passos significativos rumo a esse objetivo. Com efeito, a própria medida de utilização científica da dinâmica não-linear e da análise das experiências subjetivas pode servir para a identificação de algumas grandes correntes de pensamento em meio à grande multiplicidade de métodos de estudo da consciência de que
dispomos hoje em dia.(15)

A primeira corrente de pensamento é a mais tradicional. Conta entre seus membros a neurocientista Patrícia Churchland e o biólogo molecular Francis Crick, ganhador do Prêmio Nobel.(16) Essa escola foi chamada de "neurorreducionista" por Francisco Varela, pois reduz a consciência aos mecanismos nervosos. Assim, a consciência é "desexplicada", como diz Churchland, da mesma maneira que, na física, o calor foi "desexplicado" quando foi identificado à pura e simples energia das moléculas em movimento. Nas palavras de Francis Crick: "Você", suas alegrias e tristezas, suas memórias e ambições, sua noção de identidade pessoal e livre-arbítrio, não passam, na verdade, da resultante comportamental de um grande conjunto de células nervosas e das moléculas a elas associadas. Como Alice de Lewis Carroll teria dito: "Você não passa de um saco de neurônios."(17)

Crick explica detalhadamente como a consciência se reduz à ativação dos neurônios, mas também afirma que a experiência consciente é uma propriedade emergente do cérebro como um todo. Contudo, não chega a tratar da dinâmica não-linear desse processo de surgimento espontâneo de uma nova propriedade, e não consegue, desse modo, roer o "osso duro" da ciência da consciência. Eis o desafio lançado pelo filósofo John Searle: "Como é possível que a ativação de neurônios, que é um processo físico, objetivo, descritível em termos puramente quantitativos, provoque experiências qualitativas, particulares, ubjetivas?"(18)

A segunda corrente de estudo da consciência, chamada de "funcionalismo", é a mais popular dentre os filósofos e estudiosos da cognição de hoje em dia.(19) Seus defensores
afirmam que os estados mentais são definidos pela sua "organização funcional", ou seja, por padrões de relações causais no sistema nervoso. Os funcionalistas não são reducionistas
cartesianos, pois prestam cuidadosa atenção aos padrões nervosos não-lineares. Negam, porém, que a experiência consciente seja um fenômeno emergente e irredutível. Pode até parecer que não se reduz a nenhum outro fenômeno; mas, na opinião deles, o estado de consciência se define completamente pela organização funcional, e, portanto, pode ser compreendido no mesmo momento em que essa organização é identificada. É assim que Daniel Dennett, um dos principais funcionalistas, deu a seu livro o título sedutor de “Consciousness Explained” [A Consciência Explicada].(20)

Muitos modelos de organização funcional foram postulados pelos estudiosos da cognição e, conseqüentemente, existem hoje muitas linhas do funcionalismo.
Às vezes, incluem-se também entre as manifestações do funcionalismo as analogias traçadas entre a organização funcional e os programas de computador, analogias essas que decorrem do estudo da inteligência artificial.(21)

Bem menos conhecida é a escola filosófica dos chamados "misterianos". Afirmam eles que a consciência é um mistério profundo, o qual a inteligência humana, em virtude de suas limitações intrínsecas, jamais compreenderá.(22) Na opinião deles, a raiz dessas limitações é uma dualidade irredutível - que, na prática, não é outra senão a clássica dualidade cartesiana entre a mente e a matéria. Se a introspecção não pode nos dizer nada acerca do cérebro enquanto objeto físico,
também o estudo da estrutura cerebral não pode nos abrir nenhum acesso à experiência consciente. Como se negam a conceber a consciência como um processo e não compreendem a natureza dos fenômenos emergentes, os misterianos são incapazes de transpor o abismo cartesiano e chegam à conclusão de que a natureza da consciência será para sempre um mistério.

Por fim, há uma corrente de estudos da consciência que, embora pequena, vem crescendo bastante, e que faz uso tanto da teoria da complexidade quanto dos relatos em primeira pessoa.

Francisco Varela, um dos fundadores dessa escola de pensamento, deu-lhe o nome de "neurofenomenologia".(23) A fenomenologia é um ramo importante da filosofia moderna, fundado por Edmund Husserl no começo do século XX e desenvolvido ainda por muitos filósofos europeus de renome, entre os quais Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty. O método básico da fenomenologia consiste num exame disciplinado da experiência subjetiva, e a esperança de Husserl e de seus seguidores era, e ainda é, a de que uma verdadeira ciência das experiências subjetivas seja criada em associação com as ciências naturais.

A neurofenomenologia, pois, é um método de estudo da consciência que combina em si o exame disciplinado das experiências subjetivas com a análise dos padrões e processos neurais
correspondentes. A partir dessa abordagem dual, os neurofenomenologistas exploram diversos domínios de experiência subjetiva e procuram compreender de que maneira eles surgem
espontaneamente a partir de atividades neurais complexas. Agindo dessa maneira, esses estudiosos da cognição estão, na verdade, dando os primeiros passos rumo à formulação de uma verdadeira ciência das experiências subjetivas.

Quanto a mim, fiquei muito satisfeito, pessoalmente, em ver que o projeto dos neurofenomenologistas tem muito em comum com a ciência da consciência que vislumbrei há mais de vinte anos numa conversa com o psiquiatra R. D. Laing, quando afirmei, a título de especulação, o seguinte: Uma verdadeira ciência da consciência... teria de ser um tipo novo de ciência, que lidasse com qualidades, não com quantidades, e se baseasse na partilha de experiências, e não em medições verificáveis. Os dados dessa ciência seriam padrões de experiência subjetiva, que não poderiam ser quantificados nem analisados. Por outro lado, os modelos conceituais que interligassem os dados teriam de ser logicamente coerentes, como todos os modelos científicos, e talvez pudessem até conter elementos quantitativos.(24)