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27/01/2008

Hannah Arendt e o declínio da esfera pública
Nerione N. Cardoso Jr. - Editor: Senado federal - Brasília - 2005
Introdução
Como pensar a política após Auschewitz, os Gulagas e Hiroshima-Nagasaki ? Em busca dessa resposta, chegou-se ao pensamento político de Hannah Arendt. Em geral, atribui-se como principal ponto de partida do pensamento político de Hannah Arendt (1908-1975) a sua perplexidade diante do totalitarismo da Alemanha Nazista e da União Soviética stalinista.

Como pensar a política após o genocídio perpetrado pelos nazistas ? O que se pode esperar da política após duas guerras mundiais e da coletivização forçada que levou à morte, pela fome, milhões de russos ? Para essa autora, a política deve se nortear pela liberdade, pela ação em conjunto e pela preservação da vida, definição que ganha relevância e urgência em face dos danos ecológicos, às atuais experiências genéticas e da ameaça sempre presente da hecatombe nuclear.

A crítica arendtiana da modernidade nos alerta sobre os riscos políticos, numa sociedade operária e consumista, da redução dos indivíduos a meras peças da máquina administrativa, "massa de manobra" para governos autoritários e totalitários, tão bem retratados nas obras "As Origens do Totalitarismo" e Eichmann em Jerusalém.

Na concepção de Hannah Arendt, o poder surge da ação em concerto dos cidadãos, e a violência destruiria as bases de sustentação desse mesmo poder. Seu espanto diante da novidade do fenômeno totalitário provoca a necessidade de revisão da tradição do pensamento político ocidental, vez que a mesma foi incapaz de prever e entender essa novidade.

Nesse sentido, Hannah Arendt resgata, nas experiências históricas das cidades-Estados antigas da Grécia e Roma, as origens de nossas tradições ocidentais, o sentido da política, que transcende a noção de poder como dominação, arraigada no pensamento político ocidental desde Platão. Hannah Arendt nos fez lembrar que, na Antiguidade, pode-se resgatar um novo rumo para a destruição que tem acompanhado a política moderna.

Mais recentemente, após a queda do muro de Berlim, o pensamento independente de Hannah Arendt, difícil de ser classificado entre as principais correntes da teoria política, cresce em relevância.

Essa autora, crítica tanto do socialismo como do liberalismo (utilitarismo), refuta a existência de leis históricas e o materialismo político como instrumentos capazes de explicar a realidade; Hannah Arendt rejeita a subsunção da política ao econômico no pensamento marxista assim como a "mão invisível" do livre mercado de Adam Smith.

Na concepção de Arendt, a teia das relações humanas sempre contém a possibilidade do novo, do recomeço (natalidade), sendo a condição humana marcada pela imprevisibilidade.

Da mesma forma, o atentado de 11 de setembro em Nova Iorque, e as sucessivas ameaças de guerra que o sucederam, remete-nos à sua teorização sobre a "banalidade do mal", a violência política, a intolerância étnica, o papel político do terror e a destruição em massa proporcionada pelas novas tecnologias armamentistas (atômicas e biológicas).

Vale lembrar que a análise arendtiana das revoluções políticas modernas refuta a possibilidade de a violência resolver a questão social, isto é, libertar os homens da pobreza.

É nesse contexto que a obra política de Hannah Arendt se destaca como uma reflexão original sobre os fundamentos da natureza do poder político afetados pela crise de valores de nossa época, mormente no que tange à sua recusa em aceitar que "os fins justificam os meios".

Essa é a razão pela qual se considera que a leitura e análise das categorias políticas desenvolvidas pela autora - o totalitarismo na sociedade de massas, o poder assentado na ação coletiva, a política como ação e diálogo, a violência como instrumento destruidor do poder, a reificação de uma sociedade de consumidores e a liberdade como sentido da política - se constituem num poderoso instrumento teórico-metodológico para uma melhor compreensão de problemas políticos contemporâneos associados ao descrédito da política, e conseuqente declínio da esfera pública.

Para tanto, a premissa desta dissertação funda-se na centralidade da esfera pública na teoria política de Hannaha Arendt, conceito básico para a compreensão das suas idéias sobre o declínio moderno da política.

A outra premissa deste trabalho é que a privatização da esfera pública, revelada pela subsunção da política ao econômico, constitui-se no principal fator daquele declínio. A presente dissertação tem como eixo central o declínio da política como consequência de seu reducionismo economicista, partindo-se da constatação de que os temas econômicos subordinam as principais discussões de natureza política em nosso tempo.

Dessa forma, percorre-se o pensamento político de Hannah Arendt através do contexto de suas principais obras, desvelando o inter-relacionamento das mesmas.

No primeiro capítulo, mapeia-se o conceito de esfera pública, locus da política, conceito presente ao longo de toda a sua obra, e que se assenta numa fenomenologia das atividades humanas de inspiração aristotélica. Acompanhou-se a construção histórica do conceito de esfera pública realizado por Arendt, que aponta para a singularidade da experiência histórica da Atenas clássica: ali, a política surge e atinge o seu apogeu na forma da polis, espaço público duradouro construído pelos cidadãos em busca da "fama imortal" através da competição pela excelência da ação e da fala realizadas em conjunto.

Apresenta-se a seguir as linhas principais da teoria política de Platão, momento que marca a separação entre filosofia e política em razão da desvalorização da aparência e da opinião (doxa) pública vis-à-vis a verdade transcendental dos filósofos.

Ainda nesse percurso pela Antiguidade, acompanha-se Hannah Arendt em sua releitura da res publica romana, baseada na autoridade e no contrato legal, e do declínio da política ocidental a partir da queda do Império Romano.

Finalizando o capítulo, buscam-se as características que definiram a esfera pública no períodod medieval, quando a Igreja Católica assumiu, a partir do século V, o espaço político mediante os espaços eclesiásticos-públicos.

No capítulo seguinte, dividido em quatro seções, analisa-se o declínio da política na Era Moderna: na primeira seção, apresentam-se as idéias de Arendt sobre a secularização da política, tendo em vista a Reforma Protestante, o surgimento das ciências naturais e de sua contrapartida filosófica, a dúvida e a suspeita cartesiana em face da capacidade de se compreender a realidade a partir dos cinco sentidos humanos.

A seção subsequente, dividida em quatro subseções, detém-se sobre a emergência, nos primórdios do capitalismo, da esfera social, e de seu pleno desenvolvimento em função do acelerado desenvolvimento produtivo durante a Revolução Industrial: analisa-se o impacto do surgimento de uma multidão de pessoas economicamente supérfluas sobre a esfera pública, com a consequente elevação dos interesses privados ao âmbito político e da instrumentalização dos governos no sentido da defesa e administração da riqueza econômica, considerando-se a redução da política à lógica de meios-e-fins do homo faber (reificação).

As revoluções Francesa e Americana são apresentadas pela perspectiva da questão social (pobreza), almejando-se evidenciar como a subsunção da política ao econômico acabou por frustrar o surgimento de novos corpos políticos republicanos que preservassem o espírito revolucionário de liberdade.

Nessa etapa, discute-se detalhadamente as polêmicas idéias de Hannah Arendt quanto à necessária separação enre as esferas política e econômica, buscando-se um diálogo com seus principais comentadores.

Em seguida, acompanha-se Hannah Arendt em seu estudo sobre o surgimento da sociedade de massas em função da mecanização da produção capitalista, destacando-se a consequente dissolução da sociedade de classes, a crise do sistema partidário, a preponderância das atividades de sobrevivência orgânica do homem enquanto animal laborans, a atrofia de um mundo comum por conta da efemeridade dos objetos produzidos para uma sociedade consumista e a instrumentalização, pela burguesia européia, do poder do Estado-nação em busca de assegurar seus investimentos nas colônias ultramarinas dentro do contexto da corrida imperialista do final do século XIX.

Na seção posterior, analisa-se a destruição da esfera pública enquanto conseqüência direta do totalitarismo: para tanto, apresenta-se a análise arendtiana dos fenômenos históricos que se "cristalizam" sob a forma do fenômeno totalitário, pela perspectiva da inter-relação das esferas privada, social e pública, com destaque para a atomização social dos indivíduos numa sociedade de operários, para a perda de um senso comum e da capacidade de julgar, para a burocratização de sociedades cada vez mais complexas e para o descrédito na política e no sistema partidário.

O totalitarismo é analisado pela ótica da busca da politização de todos os aspectos da vida humana, pela instrumentalização política do terror como meio de dominação e pela presença essencial da racionalidade burocrática na estruturação dos campos de extermínio.

Por fim, na última seção dessa dissertação, são apresentadas as idéias políticas de Hannah Arendt sobre o mundo moderno, isto é, a partir da capacidade do homem em destruir a vida no planeta através das armas atômicas. Arendt centra-se na questão da invasão da violência na esfera pública, fator que encontra seu ápice na instrumentalização política da guerra no âmbito das relações internacionais, sob a égide da premência dos temas econômicos, análise que encerra o presente estudo sobre o declínio da esfera pública através do pensamento de Hannah Arendt.