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Amélia Império Hamburger
Vol. 3 N. 13 Ciência Hoje - 1984
Professor Schenberg poderia falar sobre suas aulas, sobre o que valoriza no ensino de Física e na interação com os alunos?
Para começar, eu gostaria de dizer alguma coisa sobre minhas tendências de comportamento. Antes de tudo, sou pessoa de tendências intuitivas e não de muitos raciocínios. Assim, me comporto de acordo com o que a intuição me sugere. Posso ter preparado uma aula de acordo com uma idéia e, ao chegar na sala, mudar completamente.
Também não gosto muito de separar as coisas da vida. A vida não se separa em ciência, atividade política, atividade filosófica: a vida é uma coisa só, naturalmente marcada pela personalidade da pessoa, que se manifesta em tudo o que faz.
Eu tenho tendência a ter uma personalidade intuitiva. Quando a gente se prepara muito, deixa de ser verdadeiro consigo mesmo, fica meio fingido, e dificulta o contato com as outras pessoas. Uma aula muito bem preparada, escrita, completa, é uma aula ruim, porque é uma coisa morta, não tem a vivacidade do que está sendo criado no momento em que se diz.
O principal não é transmitir aos alunos um grande cabedal de conhecimentos, mas comunicar certos pontos de vista. Sempre me guiei por isso, pela sinceridade em tudo o que se fizer, não ser pedante, não ter excessivas preocupações lógicas e com a coerência. Para muitos parece desorganizado, mas acho que essa maneira de agir penetra mais no espírito do aluno que as aulas muito bem preparadas. Muitas vezes uma aula difícil faz o aluno pensar e pode lhe sugerir algo até anos depois.
Este amor à informalidade não é tão original. O famoso matemático e físico alemão Herman Weil dizia ter aprendido mais matemática conversando com David Hilbert, o maior matemático de seu tempo, durante os passeios que faziam pelos bosques, do que nas salas de aula, em Gottingen. Aliás, a primeira pessoa que teve forte influência sobre mim, o professor Luís Freire da Escola de Engenharia do Recife, pai do senador Marcos Freire, também me ensinou muito desse modo, nas conversas informais em sua casa.
Acho que assim se estabelece um contato mais livre, e por isso mesmo mais profundo, entre professor e aluno, onde este aproveita muito mais.
Como o senhor vê a Universidade de agora em comparação com a de outros tempos?
A meu ver, a Universidade brasileira antigamente era melhor do que a de agora. Por exemplo, pela diferença no modo de encarar o ensino. Naturalmente, havia pessoas preocupadas em dar aulas levando em conta a didática, mas havia uma certa intuição na Universidade de que o importante não era tanto transmitir conhecimento mas estimular a criatividade do aluno. De certa forma, havia uma tendência ao informalismo dentro da Universidade, que depois desapareceu, principalmente com a Reforma Universitária. Pode ser que algumas pessoas ainda o conservem, mas minha impressão é que isso desapareceu.
Outra coisa diferente é que naquele tempo as pessoas não se impunham objetivos determinados de fazer teses, mestrado, doutoramentos, o que praticamente se tornou o centro das preocupações da Universidade. A pessoa não se propõe a fazer uma pesquisa cientifica, procura fazer uma tese. Essas teses só têm valor formativo se representarem uma pesquisa científica real. A própria pessoa, pelas dificuldades que deve superar na pesquisa, vai se desenvolvendo como cientista. Hoje, sendo uma coisa meio formal, isso não acontece. Antigamente não era assim: a única tese que fiz foi para o concurso de catedrático.
Hoje se obriga a pessoa a publicar muito, a publicar demais. O critério para julgamento da eficiência científica de uma pessoa é o número de publicações, o que é uma coisa inteiramente absurda. Há inúmeros trabalhos publicados que ficaram inteiramente desconhecidos. Um exemplo curioso é o de Bunsen, químico alemão que publicou mais de quinhentos trabalhos: embora tenha ajudado muito Kirchhoff a fundar a espectroscopia, é hoje conhecido apenas pelo bico de Bunsen, o bico de gás rotineiro nos laboratórios.
Por outro lado, há pessoas que ficaram famosas com uma única publicação, como por exemplo o físico indiano Bose. A história é curiosa, pois Bose escreveu um trabalhinho de meia página e mandou para o Philosophical Magazine. Como o trabalho foi recusado, Bose mandou-o a Einstein, que o publicou, sem consultá-lo, no Annalender Physik. Nesse pequeno trabalho de meia página, descreve-se pela primeira vez uma família de partículas, chamadas bósons em sua homenagem, além de outras coisas importantes.
Essa preocupação de ter um grande número de trabalhos publicados às vezes pode prejudicar as pessoas, se é que não prejudica sempre, pois a pessoa fica naquela tensão de ter que estar sempre publicando coisas novas sem tempo para se concentrar bastante em uma determinada coisa.
Seria uma questão de ir em profundidade no trabalho?
Não é somente questão de ir em profundidade num trabalho, mas de perseguir um destino também. Acho que existe alguma coisa que está além da vontade da pessoa. A pessoa não faz um trabalho profundo e original porque queira fazer um trabalho profundo e original. Faz porque faz, e às vezes nem se dá conta de que está fazendo um trabalho profundo e original. Outros é que vão se dar conta disso, às vezes até muitos anos depois da morte da pessoa. Acho que há um destino, acredito nisso. Toda a minha carreira de físico, por exemplo, se definiu por volta dos treze anos de idade, quando estudei pela primeira vez Física e geometria.
A geometria me causou um impacto muito grande, quando vi que as impressões sensoriais, as formas, aquilo que se vê com os olhos, podiam ser transformadas em uma estrutura lógica, matemática. Ao mesmo tempo, comecei a estudar Física e vi que todos os fenômenos da natureza eram regidos por leis matemáticas. Mais tarde eu seria levado a pensar que toda a Física era, no fundo, uma geometria.
O interessante que, antes dessa idade, eu tinha estudado matemática e não tinha gostado de nada, nem de aritmética, nem de álgebra. Não era bom aluno. Em geometria, fui pela primeira vez bom aluno em matemática, porque aquilo me tocou profundamente, despertou em mim alguma coisa, era um destino.
A obrigação de fazer teses e todas essas coisas pode estar afastando as pessoas de seu destino, impelindo-as em direções que não são as delas. Tenho a impressão de que a educação não deve ser nunca uma carga para a pessoa: deve ser uma coisa estimulante, dando bastante liberdade ao aluno. Einstein, por exemplo, ficou com ódio até da própria Alemanha por causa do ginásio alemão, que era tão opressivo. Fez todas as coisas sozinho, e não foi bom aluno: não assistia às aulas, e procurava respeitar muito sua própria personalidade, suas intuições. Não era preocupação dele estar muito bem informado sobre as idéias dos outros, ou documentar essas idéias. Procurava desenvolver as que tinha e, se fossem as mesmas, ótimo, não tinha importância.
O sistema atual não visa estimular a criatividade do aluno, mas sim a sua produção. Aliás, tive uma experiência interessante quando estive nos Estados Unidos em 1940, trabalhando com o professor George Gamow. Era um russo de formação européia, tinha horror à Universidade norte-americana, e me preveniu: não vá muito à universidade daqui, não é recomendável, pois a pessoa é promovida pelo ?peso? de suas publicações, e não pelo seu peso científico. Achava que isso se devia ao fato de serem, em geral, universidades particulares, e que os boards of trustees, formados por homens de negócio, cultivavam a idéia de produção sem pensar na qualidade.
O critério para promoção, para a renovação de contrato, era o número de trabalhos. Esse critério quantitativo foi introduzido no Brasil pela Reforma Universitária que, como se sabe, é conseqüência do acordo MEC-USAID. Um físico americano famoso fez uma defesa da universidade dos EUA dizendo que o país tinha necessidade de formar 50.000 engenheiros por ano, não necessariamente os melhores do mundo, para manter o desenvolvimento industrial. Quando queriam alguém de grande capacidade, contratavam na Inglaterra, onde a organização universitária permitia formar, por ano, os duzentos melhores engenheiros do mundo.
Essa era a Filosofia dominante: aplicavam no ensino os métodos industriais. Esse sistema foi transplantado para cá, fazendo tábua rasa de toda uma tradição universitária brasileira que já existia e que talvez fosse mais adaptada ao Brasil do que aquela que foi instituída.
Estou convencido de que a Universidade de hoje é uma instituição em vias de desaparecer. Ou então será uma coisa inteiramente diferente. Terá que ser reformulada, repensada, certos objetivos deverão ser redefinidos.
O senhor tem sentido esse problema em seus contatos com alunos da Universidade brasileira?
Hoje, há alunos de pós-graduação que não sabem coisas elementares. Depois de um curso de mecânica estatística que dei agora, constatei no exame oral que um aluno não sabia o que era vapor, que vapor não é um gás. Mas isso é coisa que já se deveria saber desde o ginásio! Pelo menos no meu tempo era assim. As coisas mais elementares é que devem ser bem sabidas. Talvez os alunos tenham um conhecimento puramente operacional dessas coisas, passando a estudar coisas mais sofisticadas. Acho isso muito curioso. Não consigo formar uma idéia geral do ensino hoje em dia, mas sei que não se pode dizer que a Universidade esteja funcionando bem.
Mário, gostaríamos que contasse fatos de sua infância, de como se estabeleceu sua reação com a arte, de como foi se orientando para a Física.
Nasci no Recife, mas não fiquei muito tempo por lá. Por várias vezes passei longas temporadas no Rio de Janeiro onde a família vinha freqüentemente; minha mãe me contava que aos dois anos peguei a gripe espanhola no Rio de Janeiro. Em 1930, passei o ano todo no Rio para fazer o exame vestibular. Eu queria estudar na Europa mas não deu, não tive condições financeiras para isso. Voltei para o Recife e entrei para a Escola de Engenharia de lá.
Uma das coisas mais interessantes de minha infância foi como entrei em relação com a arte. Aconteceu quando eu tinha oito anos e fui com minha família para Paris e outros lugares da Europa. Principalmente em Paris, não sei por quê, as catedrais góticas me impressionaram muito. Até consegui que meu pai me comprasse um visor binocular, espécie de slides, e depois da volta ao Brasil, durante muito tempo, ficava olhando aquelas catedrais góticas no aparelhinho. Foi um coisa que me marcou muito, esse encontro com a arte aos oito anos de idade, muito antes de encontrar a ciência. Na volta dessa viagem, quando o navio parou em Portugal, meu pai desceu de bordo e perguntou o que eu queria que ele trouxesse. Pedi um livro de história universal, e ele me trouxe o livro de Raposo Botelho, horrível, cheio de datas, nomes de reis e batalhas. Não sei como, mas li aquilo como se fosse uma delícia. Quando cheguei ao Brasil já tinha lido o livro todo. Começou aí esse meu interesse pela história, que é também antigo e nasceu em relação com a arte. E as duas se conservaram ligadas, mesmo depois.
O interesse pela ciência veio mais tarde, aos dez anos: comecei me interessando pela tecnologia, lia uns livrinhos, em francês, sobre aviões, navios, motores. O fonógrafo me impressionava multo. Na minha infância o contato com a tecnologia era muito reduzido, mesmo o automóvel era ainda bastante raro. O vôo de travessia do Atlântico pelo Sacadura Cabral me entusiasmou, mas ainda não tinha idéia do que fosse ciência: só fui estudar Física, química e história natural no último ano do ginásio.
Esse foi um ano de grandes impactos ideológicos. Além do contato com a geometria, foi também o ano em que tomei conhecimento pela primeira vez das idéias marxistas, através da revista Cultura, publicada pelo Francisco Mangabeira, filho de João Mangabeira. Foi um tempo muito fecundo da minha vida, em que muitas coisas se juntaram e interagiram.
Eu poderia ter me tornado um artista, mas isso não aconteceu, talvez pela estupidez dos cursos de desenho, onde se punha um jarro no meio da sala de aula e tínhamos que copiá-lo. Eu, que desenhava muito, coisas da minha imaginação, não gostava de ficar copiando detalhes. Fiquei então com o complexo de que não sabia desenhar. Só com trinta anos voltei a fazê-lo e vi que não era tão sem jeito quanto supunha.
E como começou sua carreira de físico?
Eu não fui para a carreira de físico, e nem havia carreira de físico no Brasil daquele tempo. Fui para a Escola de Engenharia, como todo mundo que tinha gosto por Física ou matemática, assim como quem gostava de biologia ia para a Faculdade de Medicina. Naquela época já gostava de matemática e de Física. Fiz os dois primeiros anos em Recife e depois, no terceiro, me transferi para São Paulo. No ano seguinte, criaram a Faculdade de Filosofia, com os Departamentos de Física e de Matemática, e entrei para o curso de matemática. Na época, não havia praticamente diferença entre os cursos de matemática e de Física. Formei-me engenheiro eletricista em 1935 e bacharel em matemática no ano seguinte. Logo depois fiquei trabalhando, contratado como assistente, com o professor Wataghin, trazido para fundar o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia da USP.
No último ano da Escola de Engenharia, eu já tinha feito um trabalho de Física teórica sobre as interações dos elétrons, uma aplicação da eletrodinâmica quântica. Esse trabalho foi publicado na revista italiana Nuovo Cimento ainda em 1936. No tempo de estudante eu tinha feito um trabalhinho sobre Princípios da Mecânica, de que só publiquei a primeira parte, a Introdução, na Revista do Grêmio Politécnico. A segunda parte nunca cheguei a publicar. Já formado, fiz alguns trabalhos de Física experimental com o professor Occhialini, também na USP, sobre raios cósmicos.
Que contatos foram significativos para o desenvolvimento de seu trabalho em Física?
Aqui no Brasil esses contatos com Wataghin e Occhialini foram muito estimulantes. Pouco depois, em 1938, comissionado pelo Governo do Estado de São Paulo, fui para a Itália. Occhialini voltava para lá, em férias. Viajamos juntos, e no navio fizemos um trabalho experimental sobre a variação da intensidade dos ?showers? de raios cósmicos com a latitude. Voltei a trabalhar com ele, mais tarde, ligado a um grupo de Física experimental, na Bélgica. Em Roma, trabalhei com Enrico Fermi. Publiquei dois trabalhos sobre as funções singulares da eletrodinâmica quântica, que saíram na revista Physica.
Publiquei depois um trabalho mais completo no Journal de Pbysique et du Radium. Fiz um trabalho interessante sobre a origem dos raios cósmicos a partir dos mésons, partículas altamente ionizantes, e não elétrons e fótons, como se pensava na época. Fermi não acreditou nisso, e eu só redigi o trabalho aqui, publicando-o nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Mas o trabalho está citado no livro de Heisenberg sobre raios cósmicos.
Depois de Fermi sair da Itália, fui para Zurique, onde trabalhei com o professor Pauli. Encontrei Pauli várias vezes mais tarde, em Princeton em 1941, e depois da guerra, em Zurique, onde ele ensinava. Tivemos contatos freqüentes, que me influenciaram muito, não só do ponto de vista da Física. Eu que já tinha interesse pela filosofia oriental, fui estimulado por ele em muitas conversas sobre esse assunto.
De Zurique, como a guerra estava para arrebentar, fui para a Bélgica, perto de um porto de mar onde pudesse tomar um navio de volta. Passei antes por Paris onde encontrei Bruno Ponte-corvo, a quem me haviam recomendado na Itália Ele me apresentou a Frédéric Joliot e passei alguns meses no Collège de France onde dei seminários e conheci Paul Langevin.
Da Antuérpia peguei um navio do Lloyd Brasileiro. Era abril, e as tropas alemãs entravam em Praga. A guerra começou em setembro, quando os alemães invadiram Varsóvia.
Foi um período interessante. Gostei muito da Itália, onde me identifiquei com o povo e vi muita coisa sobre arte. Foi quando comecei a me interessar de novo pela arte. Em Paris conheci Di Cavalcanti que tinha um atelier junto com Di Chirico.
Foi muito interessante fazer essa viagem à Europa, antes da guerra. Paris antes da guerra era outra coisa. Foi um mundo que ainda pude conhecer e que desapareceu.
E o senhor voltou para lá depois da guerra?
Voltei em 1948, 49. Durante a guerra fui para os Estados Unidos, com bolsa da Fundação Guggenheim que pela primeira vez dava bolsas para o Brasil. Também recebeu essa bolsa Maurício Rocha e Silva. Fui para Washington onde estava Gamow, que eu já conhecia do Brasil. Gamow estava interessado em elucidar a possibilidade de colapso das supernovas. Poucos dias depois de ter chegado a Washington, comecei a estudar os cálculos de mecânica estatística e vi que não levavam em conta a existência do neutrino.
A idéia da existência do neutrino era recente, tinha sido sugerida por Pauli e por Fermi. A energia era consumida no centro das estrelas com a emissão de neutrinos, e se dava com uma rapidez tão grande quanto a do desaparecimento do dinheiro na mesa de roleta do cassino da Urca. Daí Gamow ter chamado o fenômeno de processo Urca. Esse foi um período bom em que tive muitas idéias.
Fui depois para Princeton, como membro do lnstitute for Advanced Studies, onde passei quatro meses com muita gente boa. Além de Pauli e Einstein, Feymann, que fazia tese, Wheeler, von Neuman, e Chandrasekhar. Trabalhei com Pauli em questões de relatividade geral, publiquei duas notas no Physical Review, uma chamando a atenção para o momento angular do campo gravitacional, pela primeira vez, e outra, um trabalho já começado no Brasil, sobre interações nucleares que não conservariam a paridade. Quando saiu esse resultado, Pauli não quis acreditar nele. Isso muitos anos antes da descoberta de Yang e Lee, que não conheciam meu trabalho. Sakata, num Congresso no Japão em 1965 mencionou esse trabalho.
Ainda em 1941 trabalhei com Chandrasekhar, no Observatório de Yerkes, sobre problemas da evolução do Sol, tendo estabelecido o "Limite de Chandrasekhar-Schenberg?. Esse resultado é importante em astroFísica e vale até hoje. Em 1942, se ficasse nos Estados Unidos teria que me alistar.
Fui convidado para ficar trabalhando na Universidade de Chicago. Acho que foi um erro voltar para o Brasil naquele momento. Voltei para fazer concurso e como demorou até 1944, fui ficando no Brasil. Trabalhei então em teoria eletromagnética, principalmente em questões ligadas ao elétron puntiforme. Em 1948 voltei à Europa para o Primeiro Congresso Mundial de Intelectuais pela Paz, depois de ter sido, em 1947, cassado do mandato de deputado e mantido
preso por dois meses.
Fiquei até 1953 na Universidade de Bruxelas, no Centro de Pesquisas Nucleares. Fiz vários trabalhos em mecânica estatística e teoria quântica, publicados no Nuovo Cimento, e que foram aproveitados em vários ramos da fisico-quimica Além desses trabalhos fiz uma reformulação da mecânica estatística clássica, construída a partir da mecânica de Newton. Mostrava que a indistinguibilidade entre partículas não é conseqüência da teoria quântica, mas está contida na teoria clássica. É uma questão de simetria Eu acho que esses trabalhos de Bruxelas são muito importantes.
Ao voltar, o senhor se viu comprometido com a implantação do ensino e da pesquisa em Física em São Paulo...
Nessa época, o Marcelo Damy era o diretor do departamento de Física. O Paulus Pompéia também foi diretor. Primeiro a Física funcionou na sede da Politécnica, na rua Três Rios, depois foi para uma casa velha na rua Tiradentes, e mais tarde para a avenida Brigadeiro, depois para a Maria Antônia e, finalmente, passamos para a Cidade Universitária. Nunca quis exercer cargos administrativos; só aceitei após ter voltado da segunda viagem à Europa, já em 1953. Aí fiquei como diretor do Departamento de Física até 1961.
Contribui para fazer várias modificações, e fui muito auxiliado pelo reitor, doutor Ulhoa Cintra. Sem a sua ajuda não conseguiríamos fundar o laboratório de Física do Estado Sólido, e isso foi importante. Todo o pessoal do departamento ia só para a Física nuclear, mas eu tinha uma divergência de opinião muito grande, tecnológica, com o pessoal do departamento de Física. Eles achavam que ia haver um revolução industrial, e que essa revolução ia ter por base a energia nuclear. Eu achava que vinha realmente uma revolução industrial, mas não baseada na energia nuclear, e sim na informática, na eletrônica.
Por isso, achava que se tinha que desenvolver a Física do estado sólido. Ninguém no Brasil entendia disso. Já havia alguns grupos, como os liderados por Bernard Gross e Joaquim Costa Ribeiro, mas eram grupos pequenos. Tentaram também iniciar um trabalho em São José dos Campos, mas não deu certo.
O nosso programa foi feito com recursos maiores, de origem federal. Quem me ajudou muito foi o então deputado Ulysses Guimarães. Enquanto todo mundo achava que o futuro seria a Física nuclear, eu não só incentivei a Física do estado sólido, como fiz o reitor, doutor Ulhoa Cintra, comprar o primeiro computador aqui da USP, um IBM. Mas precisei enfrentar uma oposição forte. Até os professores Oscar Sala e Carlos Gomes tentaram me dissuadir da idéia de comprar um computador. Diziam que em Boston não havia..
Os físicos eram contra os computadores; não enxergavam que eles iam revolucionar a ciência. E como ocorreu a respeito da política nuclear brasileira. No começo, você contava nos dedos quantos estavam realmente contra: um desastre econômico, e o pessoal não se dava conta disso. Os físicos brasileiros não têm muita intuição no que diz respeito ao sentido em que a tecnologia se desenvolve. Há uma falta de senso de realidade econômica, por erro de formação.
Em relação à energia nuclear, isso foi claro: não há dúvida de que o reator nuclear não pode competir de modo nenhum com a energia hidrelétrica. O cálculo do potencial hidrelétrico que as pessoas faziam era absurdo. A energia nuclear poderia competir com a energia da queima do petróleo, mas não com a hidrelétrica. Confundiram as coisas, achando que a energia nuclear sairia mais barata que a hidrelétrica.
Os físicos achavam que era na área da Física nuclear que iria ocorrer uma nova revolução industrial, e que as outras áreas eram teóricas. Não compreendiam que os raios cósmicos foram a primeira fonte de partículas de alta energia ? só depois é que vieram os aceleradores ? e neles estava a questão da estrutura da matéria Era falta de Intuição sobre os caminhos que a Física iria seguir. A Física nuclear ficou sendo um ramo secundário, e só escaparia disso se se tornasse tecnologicamente importante. Importante era a Física das partículas elementares, e não a Física nuclear propriamente dita. Os fundadores da Física experimental no Brasil viram as coisas com certas limitações, sem muita amplitude. Ficaram fascinados com a energia nuclear.
Professor Schenherg, o senhor considera os chamados fenômenos paranormais como pertencentes à mesma realidade que os fenômenos físicos. Como é essa sua concepção?
Um dos pontos que ainda não pude realizar ? e espero ainda poder fazê-lo? é a fusão da biologia com a Física. O grande problema que está diante da Física é o problema da vida. A mecânica quântica conseguiu fundir a química com a Física, e só depois dela foi possível explicar a valência química. A fronteira da Física ficou então na biologia, e o problema é como fundir essas duas ciências. Eu acho que entre a Física e a biologia está a parapsicologia. Não a parapsicologia pensada em termos de espiritismo. Aliás, o próprio nome ?parapsicologia?é ruim, porque dá a entender coisas que estão além da psicologia. Seria melhor ?parafisica?, o que vem logo depois da Física.
Veja só; Einstein não gostava da mecânica quântica porque achava que ia levar à parapsicologia. Que intuição! Mas ele não pensava em termos gerais da ciência, coisa que Heisenberg já fez: Heisenberg pensava em fundir a biologia e a Física. O que é fundamental na biologia? Qual a característica essencial da vida? Os biólogos não respondem a isso. Eu acho que são as propriedades parapsicológicas. Einstein compreendeu, desde 1927, que a mecânica quântica está beirando a parapsicologia. Mostrou que a matéria tem propriedades como que parapsicológicas. o que na verdade é um outro relacionamento com o espaço e o tempo: não é o da Física clássica, mas o da mecânica quântica. E essa fusão entre a biologia e a Física talvez nem se dê pela mecânica quântica, talvez seja pela mecânica clássica mesmo.
Para Heisenberg, a união da Física e da biologia se dá porque o fenômeno típico da vida é haver uma história. Por que não haver certa historicidade na Física? Essa era a idéia dele. Pode haver outras. É preciso uma certa sensibilidade para o desconhecido; o cientista tem que estar sempre à beira do desconhecido.
O cientista não é o homem que está no conhecido ? este é o tecnólogo. E o que está à beira do desconhecido é o problema da vida. Essa e outras questões talvez estejam ligadas à impropriamente chamada parapsicologia e tenham mais a ver com a Física mesmo. Esta pode ser uma das grandes mudanças do pensamento humano, um grande salto. A formação do cientista deve criar na pessoa uma atitude de abertura para o desconhecido. Precisa-se criar um faro para o desconhecido, no sentido de se suspeitar das coisas. Einstein era assim, a percepção dele era muito forte.
A idéia de paraFísica tem ligação com seu trabalho em Bruxelas ?
Em Bruxelas eu procurei mostrar que, dentro da mecânica de Newton, você podia fazer uma teoria das partículas indistinguíveis, necessária para uma termodinâmica correta, a fim de evitar o chamado paradoxo de Gibbs. Achavam que isso só tinha a ver com a mecânica quântica, com o princípio de Pauli, mas mostrei que não era assim. Foi o melhor trabalho que já fiz, liga-se com a equação diferencial de Liouville na mecânica estatística. Os artigos estão publicados no Nuovo Cimento.
Mas chegou um momento em que fiquei assustado, porque apareceram coisas estranhas, e eu não entendi: parecia que podiam acontecer fenômenos físicos que não tinham localização espacial. Mas eram teorias matemáticas. Ficou um enigma. Quem gostou foi o professor De Groot, da Alemanha. Ele me disse que fiz um aperfeiçoamento da teoria de Newton numa direção que não se supunha possível. Agora, recentemente, saiu um livro na Holanda, do físico canadense R. Paul que descobriu que, em muitos ramos da fisico-química, podem ser aplicados métodos da mecânica quântica, sem que sejam questões de mecânica quântica. E era realmente isso que eu tinha feito. Em muitas questões da Física clássica, podia-se aplicar métodos que pareciam ser da mecânica quântica, mas não eram, que então podiam ser aplicados à mecânica newtoniana.
Por ocasião desse meu trabalho, eu nem havia ainda ouvido falar em parapsicologia. Foi só há dez anos atrás que, lendo sobre fenômenos parapsicológicos, liguei as coisas, ou seja, os fenômenos não localizados no espaço. E esses fenômenos não precisam ser quânticos, podem ser clássicos. Assim que puder, vou retomar essas questões. Talvez sejam fenômenos que tenham a ver com a telepatia, porque é certo que a telepatia tem alguma coisa a ver com a Física. Só que não foi através da Física que tomei contato com a telepatia, mas através da arte. A arte está bastante ligada às coisas parapsicológicas. É possível que todo fenômeno artístico seja um fenômeno parapsicológico, ou envolva esse fenômeno.
E seus trabalhos mais recentes?
Desde 1965 comecei a trabalhar em problemas da gravitação. Publiquei, na Revista Brasileira de Física, em 1971, e na Acta Physica Austriaca, em 1973, dois artigos em que faço uma reinterpretação da teoria da relatividade geral como uma teoria da causalidade, em que o campo gravitacional seria um campo de causalidade. Assim, toda a geometria do espaço-tempo fica baseada na causalidade.
Na Revista Brasileira de Física, em 1977, publiquei um artigo sobre isso. E um tratamento mais primário do problema do espaço, em nível pré-geométrico, sem levar em conta a existência de uma métrica riemanniana. Estou no momento continuando essa linha, fazendo um trabalho em que considero um princípio variacional da teoria eletromagnética, sem métrica que conduz às coisas da mecânica quântica. A idéia é tomar as equações algébricas do conjunto das equações de Maxwell, sem admitir a priori o número de dimensões. Tomamos as leis Físicas num nível pré-métrico. A coisa estranha é que o desenvolvimento das equações vai exigir que a dimensão do espaço-tempo seja igual a quatro. Mas os trabalhos de que mais gosto são o de mecânica estatística clássica e este, que espero publicar até o fim do ano.
O senhor parece ter grande liberdade interior, não se ligar a esquemas ortodoxos.
Eu não me guio muito pelo raciocínio, O raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas.
Acredito que nem sempre se pode ver as coisas com clareza. Há coisas que, por sua própria natureza, não podem ser vistas com muita clareza. São coisas crepusculares, e se se quiser vê-las com clareza elas somem. E têm que ser vistas mesmo assim.
Não me imponho barreiras desnecessárias. As pessoas se autocensuram. Eu não. Mas é claro que não digo tudo que penso, não sou besta. Não me censuro, mas nem sempre falo dos resultados a que cheguei. A maior parte das pessoas tem medo, medo das coisas invisíveis. Eu tenho medo dos perigos visíveis. Talvez por isso eu não seja muito crédulo.
Isso nos remete à questão política.
Eu sempre fui um homem de posições políticas definidas. Sempre que tenho certeza, alguma certeza, tomo posições políticas definidas. É um dever que a gente tem, mesmo que se erre. Assim, acho que ajudamos mais as pessoas. Temos que dar opiniões, mesmo que não possamos provar; Isso pode estimular nos outros a procura, para que tomem direções. É o problema de Sócrates, que era um parteiro de idéias, tirava as idéias que estavam incubadas na cabeça das pessoas. Eu gostaria de fazer isso, e se faço, é sem a eficiência dele.
Recentemente, em um debate sobre a guerra nuclear o senhor fez uma exposição em resposta a previsões pessimistas feitas a partir da lógica da estratégia militar.
O que eu disse foi que eu sou também matemático, até certo ponto, e por isso mesmo sei o quanto a lógica é precária, de modo que não me entusiasmo muito pelas argumentações lógicas. Sei que é muito fácil descobrir uma brecha em qualquer raciocínio. Acho que no momento atual não estamos vivendo uma situação normal para a humanidade: vivemos um momento muito especial, um momento em que a humanidade como um todo está correndo o risco de extinção total... Tenho a impressão de que vivemos um momento em que coisas excepcionais podem acontecer. Temos que apelar para outras qualidades humanas: apenas os raciocínios lógicos não serão suficientes.
Podemos alinhar uma série de argumentos mas isso não nos leva a nenhuma decisão. O que nos leva à decisão é outra coisa, que nos impele à ação. Acho que a humanidade está tomando essas decisões. Vemos os povos se mobilizando pela paz na Inglaterra, na Alemanha...
Além do mais, uma discussão lógica nunca é uma discussão realista. A gente pode aplicar a lógica a toda e qualquer questão. O difícil é ter o senso de realidade. O problema que se coloca hoje é este: a humanidade pode ser destruída dentro de poucos dias, ou poucas horas, ou vai continuar sua história? E essa é uma questão inteiramente nova.
Mesmo a questão da ideologia política de uma pessoa... não é o tipo de questão que mais interessa no momento. Diante dessa iminência de destruição total, uma divergência política e ideológica, por maior que possa ser, não é tão grande como se pensava antes...
Neste momento, temos de ter uma grande intuição. O valor de um pensamento não é o quanto ele é lógico, mas o quanto ele representa a realidade. Temos que procurar vivenciar esta realidade de nossos dias, que é uma realidade muito rica, contraditória, complexa e que pode ser muito diferente do que nos parece à primeira vista. Vivemos um mo mento crucial e isto certamente não vai levar à inação.