Ministro da Justiça espanhol defende a criação de uma polícia universal, ligada pela internet e
pronta para agir em toda parte.
Um agente da Polícia Federal brasileira apura que o chefe de uma quadrilha que trafica mulheres para a Europa é russo. Ele liga seu computador e acessa o banco de dados da polícia de Moscou. Obtém ali todas as informações sobre o criminoso. Descobre que ele se encontra foragido na Austrália. Entra em contato, então, com seus colegas em Sydney e, rapidamente, consegue a prisão do criminoso e sua extradição para o Brasil. O ministro da Justiça da Espanha, Juan Fernando López-Aguilar, sonha todos os dias com essa situação. E trabalha com afinco para torná-la realidade. Ele percebeu que o crime organizado se globalizou – e se angustia em saber que as polícias ainda são eminentemente nacionais. Para ele, se o mundo não tiver uma polícia universal, perderá a batalha da segurança pública. Não se trata de criar um organismo único, com sede em um determinado país e ampla capacidade de intervenção sobre os Estados nacionais. López-Aguilar aposta na rede mundial de computadores para integrar as polícias. Ele sabe que a concretização da idéia não é fácil. Para realizá-la, vai buscando parceiros pontuais. Foi o que fez na semana passada em Brasília, onde assinou, na segunda-feira 22, um convênio com o Ministério da Justiça que estabelece entre os dois países a cooperação que ele sonha que um dia se dará em nível mundial.
Aos 45 anos, López-Aguilar é um dos expoentes do governo socialista espanhol. Cartunista e violonista nas horas vagas, o ministro, formado em direito pela Universidade de Granada e em ciências políticas pela Universidade de Madri, é mestre em direito e diplomacia pela Fletcher School of Law & Diplomacy, de Massachusetts, nos Estados Unidos. No plano interno, um de seus primeiros projetos foi legalizar e regulamentar no país o casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Agora, negocia um acordo de paz com o grupo terrorista basco
ETA. No plano do combate ao crime, o ministro é inflexível. “Não há hoje em
Madri um mero assalto que não esteja conectado a uma rede organizada maior.
E não creio que seja diferente em outros países. Para um crime global, é preciso uma ação global”, defende. Em Brasília, López-Aguilar recebeu ISTOÉ para a seguinte entrevista exclusiva:
ISTOÉ – As máfias internacionais agem de maneira interligada?
Juan Fernando López-Aguilar – Sim. Na Espanha, já descobrimos que nem sequer a criminalidade menor está hoje desconectada de redes de crime organizado. Em Madri, já não há mais um assalto à mão armada que não esteja encadeado numa trama bem maior. O delinqüente individual quase não existe mais. Tudo está ligado. E está conectado ainda à corrupção nas administrações dos países empobrecidos.
ISTOÉ – Onde aparece a unidade das quadrilhas?
López-Aguilar – As redes de lavagem de dinheiro são as mesmas. A escala é planetária. É imprescindível que os países tenham consciência de que precisarão também combater o crime em escala planetária. É necessária uma Justiça global. Eu tomo o exemplo da Espanha, mas ele certamente vale para outros países. A Espanha viveu nos últimos 20 anos uma transformação social acelerada e sem precedentes. Progresso, bem-estar, abertura para o mundo. Mas, ao mesmo tempo, isso gerou uma exposição à penetração, por sua posição geofísica, a todas as formas de criminalidade organizada do planeta.
ISTOÉ – Por exemplo?
López-Aguilar – Nossa preocupação maior é o terrorismo, contra o qual combatemos durante todo o tempo da nossa experiência democrática. Trinta anos contra o ETA. Agora, contra o ETA e contra o terrorismo de grupos fundamentalistas islâmicos. Mas há outra forma de crime organizado que penetrou com força na Espanha nos últimos dez anos. Preocupa-nos enormemente o tráfico de pessoas. A exploração de trabalhadores recrutados pelas máfias da imigração irregular, que operam essencialmente no continente africano, e penetram com muita força na Espanha. O tráfico de mulheres. E a lavagem de dinheiro procedente de negócios ilícitos, em toda a área do Mediterrâneo.
ISTOÉ – Quais são as conseqüências?
López-Aguilar – Isso tem provocado também o surgimento de crimes que até então não conhecíamos na Espanha, como assassinatos de mafiosos em ajustes de contas. Tem ainda o surgimento do crime organizado juvenil, a serviço de redes do crime organizado. A Espanha não estava especialmente preparada para esse fenômeno. O trabalho do nosso governo está sendo construir uma estratégia prioritária de segurança pública. Mas, ao mesmo tempo, empurrar a União Européia e o mundo para a construção de um espaço de justiça e segurança, que vem da compreensão de que a luta contra essas formas de crime organizado não está ao alcance de nenhum país da comunidade internacional sozinho. A maioria dessas formas de criminalidade requer estratégias supranacionais e recursos supranacionais. É preciso um esforço conjunto de cooperação mundial.
ISTOÉ – Como é possível montar a polícia e a Justiça globais?
López-Aguilar – Não é o caso de se imaginar um organismo internacional, com poderes sobre o mundo inteiro. Mas uma compreensão de que os países precisam se unir, cada um com suas forças e instituições, num esforço global. Primeiro, nós temos de reconhecer a qualidade dos princípios constitucionais de cada país. Depois, levantar travas e barreiras tradicionais. Não importa se a tipificação de um crime não seja idêntica em cada país. O importante é a confiança mútua de que, em cada um dos países, o que será perseguido é o combate ao crime.
ISTOÉ – Como conseguir adesões?
López-Aguilar – Não é fácil. O mundo demora a tomar consciência de que estamos em um processo acelerado de globalização, sem possibilidade de retrocesso. A globalização é um espaço de oportunidades. Mas também de ameaças e riscos nunca antes conhecidos. Há o lado assustador da globalização, que é a globalização do terror, do crime. E isso põe à prova a capacidade de resposta dos aparatos convencionais de segurança das nações. Se não pusermos em comum nossas capacidades, haverá muitas batalhas que não poderemos ganhar.
"Na Espanha já não existe um criminoso que aja sozinho. As quadrilhas crescem e se tornam planetárias"
ISTOÉ – O crime se globalizou mais
rápido que os governos?
López-Aguilar – Sem dúvida. Move volumes
de recursos descomunais, com proporções estratosféricas. E a capacidade de resposta
dos Estados da comunidade internacional
ainda é muito vulnerável.
ISTOÉ – Chegaremos a ter uma polícia universal?
López-Aguilar – Sim, no sentido de uma integração das polícias de cada país em torno dos mesmos objetivos. Mas não é algo fácil. Na Europa, estamos tendo enormes dificuldades para construir uma polícia européia onde mais necessitamos, que
é nas fronteiras.
ISTOÉ – Qual a dificuldade?
López-Aguilar – Primeiro, requer um aporte
muito grande de recursos dos vários países. Em segundo lugar, há desconfianças com respeito à criação de um instrumento comum que tradicionalmente é reservado a cada país. A segurança e a polícia são consideradas historicamente como parcelas de soberania dos Estados. Há resistência e ceticismo em muitos governos. Mas fazer a integração é imprescindível.
ISTOÉ – Como anda a globalização do tráfico de drogas?
López-Aguilar – Toda a droga que chega na Europa vem da América Latina e descreve um mesmo circuito. Normalmente, chega em Cabo Verde ou nas Ilhas Canárias e alcança a costa espanhola por barco. É imprescindível criar um controle externo comum de fronteiras. Sobretudo, no tráfico de pessoas. Há um movimento de pessoas do continente africano para a Europa numa escala sem precedentes. A explosão demográfica e a fome estão empurrando milhões de pessoas do continente africano rumo à Europa. A maioria prefere a França, mas passa antes pela Espanha. Na Europa, se traficam mulheres. Na Europa, se exploram trabalhadores irregulares. Na Europa, se consome droga, se lava dinheiro. E se há um país que está experimentando todos esses fenômenos com enorme violência é a Espanha. Para nós, é imprescindível criar uma polícia européia de fronteiras.
ISTOÉ – A globalização da Justiça não pode deixar os países pobres
mais submissos à vontade das nações mais fortes?
López-Aguilar – Esse é um aspecto fascinante. A Espanha fez uma aposta no direito internacional, pela paz e pela Justiça universal. A Espanha repudia os crimes de lesa-humanidade, torturas, genocídio, terrorismo. A universalização da Justiça penal que pregamos repudia tudo isso. Se o arcabouço legal que prevalecer for esse, não há esse risco. Uma situação dessas será mundialmente repudiada.
"Temos de massificar a investigação dos crimes de interesse mútuo. O Brasil não pode ficar de
fora dessa rede"
ISTOÉ – Como está a velocidade
da cooperação Brasil-Espanha?
López-Aguilar – Há três áreas prioritárias que queremos ganhar inicialmente para a idéia de globalização da Justiça: a União Européia, a região do Mediterrâneo e toda a América Latina. Estamos buscando fechar acordos maiores no âmbito de todos os países da Conferência Ibero-Americana de Ministros da Justiça, que inclui o Brasil e os países de língua espanhola no continente. E também fazemos acordos bilaterais. Como o que fechei com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
ISTOÉ – O que diz esse convênio?
López-Aguilar – Trata-se de uma cooperação
policial em matéria penal. Objetiva a troca de informações dos nossos bancos de dados, em tempo real, e estabelece normas para ações conjuntas das polícias. O convênio unifica toda a capacidade dos aparatos de segurança e de Justiça dos dois países. Haverá acesso imediato aos elementos probatórios, aos antecedentes criminais. Por uma solicitação do governo brasileiro, a Justiça espanhola entrará em ação para evitar destruição de provas ou reter bens obtidos ilegalmente. E ainda facilitar a extradição rápida de pessoas condenadas, acusadas de delitos, investigadas e processadas.
ISTOÉ – Como anda a cooperação onde ela já existe?
López-Aguilar – Essas técnicas funcionam muito bem na União Européia, e podemos estender esse modus operandi aos países latino-americanos que fizerem convênio conosco. Parece-me muito fácil avançar com isso em relação aos países latino-americanos. Aqui se fala espanhol ou português, caso do Brasil. As línguas são muito semelhantes. Temos que massificar a investigação conjunta de delitos de interesse mútuo ou transnacionais. Brasil e Espanha têm de trabalhar juntos. Sem o Brasil, o combate ao crime na América Latina não terá grandes resultados. Seu país não pode ficar de fora dessa rede.