Gilberta Acselrad
Segundo Maria Rita Kehl, "do crime da rua Zacarias de Góis, em São Paulo, pouco podemos explicar"(1) . Suzane, o namorado e o irmão deste planejaram e mataram os pais da moça. Algumas considerações gerais sobre uma família que em tudo parecia estruturada segundo padrões ideais - pai e mãe casados, profissionalmente bem sucedidos, saudáveis, ricos, filhos que estudam, viagens registradas em retratos sobre um móvel, empregados que cuidam da casa. Como explicar a tragédia? A repressão a um namoro que não segue as normas familiares previstas parece não ser suficiente. Rapidamente, na imprensa se sugere que o uso de drogas tenha influência no ato - "Suzane fumava maconha". A violência associada à droga é sugerida, com chances de tudo explicar.
Alguns dias depois, um rapaz também estudante, mata a avó e a empregada. Desta vez, mais facilmente, surge a associação entre violência e uso dependente da cocaína: afinal, em meio à ação, o rapaz teria trocado objetos de valor, comprado e consumido cocaína.
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"Ações violentas são sistematicamente explicadas, de forma reducionista, como decorrentes do uso individual e descontextualizado de drogas"
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Ações violentas são sistematicamente explicadas, de forma reducionista, como decorrentes do uso individual e descontextualizado de drogas. Como se o usuário sem história, na sua solidão, fosse possuído pelo produto, o qual intervém no seu psiquismo: sendo mais forte que ele, o domina e o transforma num outro que não 'é' mais ele próprio. O autor da violência torna-se assim, contraditoriamente, culpado e irresponsável. Dependendo do grau de violência e, principalmente, se a droga é ilegal, é um criminoso.
Na contramão de associações individualizadoras e centradas na substância psicoativa, são recorrentes, porém, na literatura sobre o tema, reflexões que tentam recuperar os contextos do consumo e suas diversas apropriações, diversos usos e costumes verificados ao longo da história da humanidade (2). Claude Olievenstein há mais de trinta anos continua dizendo que "a toxicomania resulta do encontro entre um produto, uma personalidade e um meio sócio-cultural", "não acontece de forma isolada.... é um sintoma de um mal estar na civilização, de um mal estar do sujeito em relação ao seu próprio desenvolvimento pessoal"(3) . A história do uso de drogas, portanto, parece ser antiga e complexa. Relatos de usuários e a produção científica sobre o tema podem esclarecer uma questão que parece ser muito maior do que pensa a nossa 'vã filosofia'. Entretanto o senso comum, permeado por tantos mitos e mistificações, associa violência à droga, de forma automática, como se um ato desviante - o uso de drogas, sem diferenciações - potencialmente se somasse a atos violentos. Explicação reduzida ao âmbito individual e que, ao mesmo tempo confunde, não esclarece as associações de fato existentes que, não sendo aprofundada, produz violência .
A proposta da 'guerra às drogas' articulada ao just say no, exclui aqueles que não conseguem, não podem ou não querem adotar a abstinência e, portanto, não contribui para uma reflexão ampla e democrática. Como alternativa, a educação para a autonomia - capacidade de reflexão e ação que garantam o bem estar individual e coletivo(4) - prepara o sujeito para lidar com o mercado das substâncias, educação esta, sim, capaz de nos ajudar na superação de usos indevidos de drogas.
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"Faço parte de uma geração
que acreditou que o homem, a mulher é sujeito de sua história."
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A banalização do mal tem sua influência, mas será que um pacifista - e existem tantos, com histórias de vida tão diferentes -, ao usar uma droga - e existem tantas drogas, e com tantos efeitos diferentes-, pode se transformar num personagem do tipo Rambo, ou como um personagem como os apresentados mais recentemente no filme Clube de Luta?
Segundo a mídia, Suzane era usuária de maconha, mas não nos foi apresentada como tendo participado do assassinato de seus pais 'sob' o efeito da droga que, no caso, não ajudaria particularmente na forte energia despendida no ato: os efeitos da maconha no sistema nervoso central não são estimulantes; pelo contrário, a droga é, essencialmente, relaxante.
Faço parte de uma geração que acreditou que o homem, a mulher é sujeito de sua história. Essa história, hoje, é construída em meio a muitos 'ruídos' produzidos pela desinformação, por falsos valores do tipo 'consumo', logo existo', num cenário televisivo onde somos apresentados majoritariamente como brancos, jovens, competitivos e bem sucedidos; valores que produzem exclusão, que 'entorpecem' a consciência dos ideais de afeto e solidariedade, comprometendo nossas escolhas.
Freud afirma em O mal estar da civilização que diante de sofrimentos como a sua mortalidade, as ameaças advindas das forças da natureza e as frustrações que o outro lhe infringe, o sujeito criou a ciência para explicar o mundo, a arte para embelezá-lo e as drogas como forma de alívio. De imediato podemos associar drogas à não-dor, mas também drogas ao prazer e não obrigatoriamente à violência. Recuperar a memória da produção e consumo de drogas pode ser um caminho para entendermos esse nosso vasto mundo.
Alguns fatos históricos afirmam a relação violência e drogas, não como casos isolados, individuais, mas sim contextualizados. No final do século XVIII e início do século XIX, duas guerras opõem a Grã-Bretanha e a China. A China exporta sedas e especiarias. A Inglaterra não consegue vender seus lençóis de lã entre os chineses. O conflito - conhecido como Guerra do ópio - tem como tentativa impor aos chineses a liberdade de comércio do ópio, comércio este organizado pela Companhia das Índias Orientais, companhia privada, ávida de lucros, reconhecida pelo Estado inglês e detentora do monopólio da cultura do ópio e supervisora do seu refinamento e venda. Ao final do conflito, o uso tradicional - o ópio era conhecido desde o século X por suas virtudes terapêuticas contra a febre, o paludismo, a fadiga, e por seus efeitos afrodisíacos - é substituído pela generalização e banalização do seu consumo. O crime organizado já existia na época, o contrabando era tolerado, afinal reconhecia-se o papel do ópio como moeda, inclusive com força para dominar cidades e sustentar administrações (5). Este conflito tão antigo sugere uma relação mais ampla entre violência e drogas.
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"A criminalização do uso de drogas no Brasil,
pela lei 6.368/76, é considerada por Karam um absurdo jurídico : o uso indevido de drogas
é considerado uma doença e propõe-se como
'tratamento' a pena privativa de liberdade, forma violenta, desmedida pois a auto-lesão não é considerada crime no Código Penal"
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Outros Estados tiveram atitudes diferentes em relação às drogas. No início do século XIX, trabalhadores chineses chegam aos EUA e se integram à construção de ferrovias. Durante todo período da construção das estradas, mantêm suas práticas tradicionais, entre elas a do consumo do ópio. Terminada a construção, durante a crise econômica de 1929, quando o desemprego se generaliza, os trabalhadores chineses competem com os americanos, e tornam-se mal vistos, marginalizados porque "são violentos, violência que seria decorrente do...consumo do ópio" (6). Violência associada ou não à mesma droga, em função de interesses de ocasião. A pesquisa histórica sobre as drogas é rica em exemplos: a cocaína já foi vendida como tônico fortificante e seus consumidores a recebiam pelo correio nos EUA, no início do século XIX; a maconha ainda hoje é usada no interior do Brasil no momento do parto e em outras situações que requerem um relaxamento muscular.
A criminalização do uso de drogas no Brasil, pela lei 6.368/76, é considerada por Karam um absurdo jurídico (7) : o uso indevido de drogas é considerado uma doença e propõe-se como 'tratamento' a pena privativa de liberdade, forma violenta, desmedida pois a auto-lesão não é considerada crime no Código Penal. Considerar o usuário de drogas um criminoso, em que pese a ilegalidade da substância de escolha, seria equiparável à criminalização do suicídio.
Culpabilização e criminalinalização do usuário podem ser uma rima mas não são uma solução. A cada dia, novas drogas surgem no mercado, o consumo se altera devido às injunções do mercado no qual as drogas são uma entre tantas mercadorias. Sujeitar-se ao mercado, adotar usos indevidos é a opção esperada pela sociedade de consumo. A construção de novas formas de relação com as drogas passa pelo resgate da memória de como o modelo de produção, venda e consumo se organizou, passa pela criação coletiva de controles sociais do consumo de substâncias psicoativas, como alternativa democrática.
(1) Psicanalista e ensaísta, em "Banalidade do mal e fantasia telenovelesca", artigo publicado no Suplemento MAIS do Jornal Folha de São Paulo, de 14 de novembro de 2002, página 9.
(2) Henmann, A. e Pessoa Jr. O. - Diamba sarabamba, coletânea de estudos sobre a maconha, Ed. Ground, São Paulo, 1986.
(3) Olievenstein, C. e Parada, C. - Comme um ange cannibale, drogue, adolescents, société, Ed. Odile Jacob, Paris, 2002, pp.15.
(4) O que é da ordem do meu desejo mas que é melhor evitar no sentido da garantia do bem-estar individual e coletivo. O conceito de educação para a autonomia é analisado por Castoriadis em 'Psychanalyse et politique', Revue Lettre Internationale, 21:54-47, Paris, 1989.
(5) 'Le Dossier de la Drogue', Revista L´Histoire, nº 266, Paris, Junho 2002, pp.34-57.
(6) Carlini Cotrin, B. - Mitos e Verdades. São Paulo, Ed. Atica, 1999.
(7) Karam, M.L. - ´Legislação brasileira sobre drogas: história recente - a criminalização da diferença´ in Acselrad, G. (org.) - Avessos do prazer: Drogas, Aids e Direitos Humanos, Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000.